sexta-feira, 30 de abril de 2021

"Com o enorme rombo orçamentário gerado pela Covid-19, por que não descriminalizar os jogos?", por Pedro Costa e Daniel Homem de Carvalho

Acabar com o monopólio estatal e permitir o mercado de jogos e loterias é uma solução



Dívida pública em 90% do Produto Interno Bruto (PIB). Desemprego atingindo mais de 14 milhões de brasileiros. E carestia superando o teto da meta. (Como previsto por este Instituto).

Estes são alguns dos retratos atuais da economia brasileira, que estava crescendo bem até 2019, mas foi golpeada pela Covid-19 e pelos lockdowns impostos por prefeituras e governos estaduais.

atual rombo nas contas públicas é preocupante, e terá de ser fechado de alguma forma. A crise fiscal não é um tema ideológico; é totalmente de natureza contábil. Terá de ser corrigida de alguma forma: ou via inflação monetária ou via aumento de tributos (reduzir gastos seria o ideal, mas isso nunca foi feito, até porque a Constituição não permite).

Felizmente, no entanto, há uma "terceira via". E esta seria a boa terceira via.

O que já está sendo discutido

O Senado Federal vem se mobilizando para aprovar um projeto que regularize os cassinos no Brasil. O objetivo é claro: arrecadar recursos.

Contudo, por esbarrar no debate ético-moral, a ideia é vista com desconfiança por parte do governo e do Congresso.

Durante a reunião ministerial de 22 de abril de 2020, que foi divulgada por meio de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, disse que o Brasil deveria "discutir os resorts integrados a cassinos". No entanto, a fala motivou uma reação da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que considerou a ideia um "pacto com o diabo".

Meses após o episódio, Álvaro Antônio foi sucedido por Gilson Machado no cargo, mas a opinião da liderança do Ministério do Turismo não mudou. Em entrevista ao Programa Pânico, da Jovem Pan, Machado afirmou: "Fomos aos Estados Unidos para estudar o caso de sucesso que passa a legalização dos cassinos por lá. No Brasil, cabe ao Congresso, mas eu sei que, se aprovado, pode trazer muito investimento".

Projeto de Lei (PL) 2648, de 2019, cuja autoria é do senador Roberto Rocha (PSDB/MA), é um dos textos mais avançados no Senado sobre a regulamentação dos chamados "jogos de azar". Ele prevê a "exploração de cassinos por tempo determinado e operação de jogos autorizados pela União somente em complexos integrados de lazer [resorts]".

O PL argumenta que a receita a ser gerada com o pagamento dos impostos do jogo legal reforçaria os cofres públicos em um momento de escassez de recursos e poderia ser direcionado para, entre outros meios, programas sociais.

À Arko Advice, o relator do projeto, senador Ângelo Coronel (PSD-BA), disse ser imprescindível para o país discutir como angariar novas receitas sem que seja necessário aumentar impostos. "O momento pandêmico atual exige maior arrecadação de recursos, mas sem aumento de impostos. Dessa forma, o projeto pode ser um meio de alavancar a recuperação econômica do país". 

O PL estabelece que apenas hotéis com, no mínimo, acomodações hoteleiras de alto padrão, locais para a realização de reuniões e eventos sociais, culturais ou artísticos de grande porte, restaurantes e bares e centros de compras possam desfrutar da regularização.

De acordo com o texto, a autorização de funcionamento e definição da carga tributária — valores e tipos de impostos — caberá ao Executivo. 

Além disso, serão priorizadas as áreas brasileiras que apresentam os piores indicadores socioeconômicos de municípios ou região, como PIB, renda per capita, IDH (que considera níveis de educação d segurança), Coeficiente de Gini (que mede a desigualdade de renda) ou índice de desemprego.

Segundo um levantamento de 2017 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), os estados de Alagoas, Maranhão, Piauí, Pará e Sergipe são os piores colocados no ranking de IDH no país.

Além do PL 2648/19, há outras propostas sobre o tema no Senado. Por exemplo, o PLS 186/2014, do senador Ciro Nogueira (PP-PI), que autoriza a exploração de "jogos de fortuna", on-line ou presenciais, em todo o território nacional, incluindo cassinos em complexos de lazer.

O texto, que foi desarquivado em 2019 e sofreu alterações nas comissões, prevê a regulamentação para jogo do bicho, videobingo e videojogo, bingos, cassinos em complexos integrados de lazer, cassinos on-line e apostas esportivas e não esportivas. 

O credenciamento para exploração do jogo de bingo e videobingo terá prazo de 20 anos, renovável por igual período. Já o dos cassinos terá validade de 30 anos, podendo ser renovado por sucessivos períodos. Neste projeto, acertadamente, a autorização caberá aos estados brasileiros, e não à União, como propõe o senador Roberto Rocha.

Hipocrisia

Antes da abordagem, algumas premissas precisam ser esclarecidas.

1. O jogo no Brasil não é proibido.

A proibição aos jogos de azar no país é dirigida apenas à iniciativa privada. A Lei das Contravenções Penais proíbe os jogos de azar gerenciados pela iniciativa privada.

Os jogos de Loteria são permitidos, desde que sob o monopólio tanto do governo federal (via Caixa Econômica Federal) e dos governos estaduais (a Loterj é a mais famosa).

Como diz o velho bordão liberal, "o estado odeia a concorrência".

Ou seja, na prática, o que se tem não é uma proibição do jogo no Brasil, mas sim um monopólio estatal do jogo. 

2. A existência das loterias estaduais vem sendo reiteradamente restringida desde o Decreto Lei 204/67 até a — juridicamente questionável — Súmula Vinculante 2 do Supremo Tribunal Federal.

Na prática, portanto, também no setor de jogos, o modelo federativo previsto na Constituição Federal não se aplica. Somente a União legisla sobre "consórcios e sorteios".

Hoje, há apenas quatro loterias estaduais em funcionamento: LOTERJ, LEMG, LOTEP e LOTECE. As outras loterias estaduais abolidas foram ocupadas por títulos de capitalização, pecúlio ou seguros premiados com sorteios lastreados na Loteria Federal.

Ou seja, nosso sistema "federativo" entende lícito um jogo de azar federal e ilícito o mesmo jogo explorado pelas loterias dos Estados. Isso mostra que nossa federação realmente é de "fachada".

3. Por uma definição da legislação dos anos 1930 (Decreto nº 21.143, de 10 de Março de 1932), a atividade lotérica é um "serviço público" (artigo 20).

Embora a teoria do serviço público não apresente nenhum argumento para isso, o fato é que assim está definido. No entanto, trata-se de uma atividade econômica típica e deveria estar submetida aos princípios da economia de mercado, da livre concorrência, da liberdade de iniciativa e da propriedade privada. 

Sendo repetitivo, o governo odeia concorrência.

O que deve ser feito

Desnecessário dizer que projetos de "legalização" do jogo não devem ser centralizados na União. Discussões em relação a detalhes que dizem respeito à lógica do mercado não devem ser definidos por uma legislação extremamente detalhista, criada pelo Congresso Nacional, para ordenar o jogo privado.

Não faz sentido, por exemplo, regulamentar um modelo de cassino-resort a ser adotado em todo o Brasil, com a especificação do mínimo de quartos e de locais para entretenimento e lazer.

Isso não tem nenhum chance de dar certo neste país imenso. 

Muito mais sensato seria que cada estado da federação optasse por sua fórmula de regulação — genérica, bastante genérica.

A velha e boa lógica de mercado deve ser aplicada a uma indústria que possui naturalmente concorrência e que não vai — e nem deveria poder — ter acesso a financiamento com dinheiro público. Falamos de dinheiro privado gerido e operado por entidades privadas.

Assim sendo, uma proposta de "regulação" para o jogo privado no Brasil deve ser minimalista: impor o mínimo e deixar que os agentes privados se ocupem de gerar renda, emprego e impostos. Afinal, como seria possível aplicar um "choque de capitalismo" neste mercado regulado, monopolista e estatal?

Uma regulação que visasse a liberar as forças produtivas para trabalhar precisaria de apenas quatro normas:

a) a revogação do Decreto-Lei nº 9.215 de 30 de abril de 1946 que supôs abolir o jogo no Brasil por ser "degradante" para o ser humano;

b) a revogação dos artigos 50 a 58 do Decreto-Lei nº3.688 de 3 de outubro de 1941 (Lei de Contravenções Penais);

c) reconhecimento do status de atividade econômica à atividade de jogo, superando a extravagante classificação de "serviço público"; e

d) delegação aos estados para que, no âmbito de seus territórios, regulamentem a atividade. Isso é o genuíno federalismo.

Pronto. Só isso.

Essa fórmula poderá superar o excesso de preciosismo de que padecem os projetos de lei até aqui apresentados e certamente começará a dar frutos imediatos em termos de criação de renda, empregos e receitas tributárias (não é isso que o governo quer?), permitindo que as empresas, submetidas aos princípios da atividade econômica, se adaptem muito mais agilmente às especificidades sócio-culturais de cada região do país.

De quebra, daria até para custear o Renda Cidadã, que é a nova proposta de programa social do Governo Federal que pretende substituir o Bolsa-Família, ampliar o número de pessoas atendidas e aumentar o valor do benefício — que atualmente é de quase R$200. 

Para concluir

Jogos são uma atividade econômica como qualquer outra: envolvem riscos e há tanto chances de ganho quanto de perda. Não são mais arriscados do que abrir uma padaria, um salão de beleza (há alguma garantia de sucesso nesses empreendimentos?) ou aplicar dinheiro a curto prazo na bolsa de valores.

Acima de tudo: absolutamente ninguém é obrigado a participar. Só joga quem quer. 

Proibir pessoas de jogar (o que significa proibi-las da possibilidade de ganhar dinheiro), além de ser um paternalismo rasteiro, representa um atentado à liberdade mais básica do indivíduo.

Pedro Costa e Daniel Homem de Carvalho

Pedro Costa é estudante de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, São Paulo, e participou da fundação da CNN no Brasil, trabalhando por um ano na emissora. Atualmente, direto da capital federal, cobre política e economia em O Brasilianista e na Arko Advice.

Daniel Homem de Carvalho é advogado, presidente da Comissão de Direito dos Jogos e Entretenimento do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), e secretário da Comissão de Direito dos Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento da OAB Nacional.

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