quarta-feira, 28 de abril de 2021

Bolsa atrai investidores - Número de pessoas físicas na B3, que por dez anos havia ficado em torno de 500 mil, chegou aos 3 milhões em 2021

Quem acompanha o mercado, esse ente quase místico aos olhos do leigo por onde circulam bilhões diariamente, sabe que o grande referencial da vida real da economia é o comportamento do iBovespa, o índice das ações negociadas na B3.

Termômetro de tudo o que acontece pelo mundo a cada minuto, a B3 tem uma história que vai além do centenário. Sua primeira versão nasceu como Bolsa Livre, em agosto de 1890, por iniciativa de um corretor informal do mercado de balcão da capital paulista, Emílio Rangel Pestana.

Ele tentou reproduzir no jovem Brasil republicano um modelo que já existia na Europa, desde que o primeiro balcão foi criado na Antuérpia, na Bélgica, em 1531. Ali, agentes e corretores centralizariam as operações que, à época, eram fechadas pelas ruas, com grande risco de fraudes.

A desconfiança com o mercado de capitais faria demorar mais quatro anos para se criar, em 1895, o embrião do modelo que sobreviveu até hoje, com a Bolsa de Fundos Públicos de São Paulo.

Depois de consolidar, ao longo das três últimas décadas do século 20, todas as bolsas estaduais e regionais, a Bovespa (Bolsa de Valores de São Paulo), repaginada em 1967, abriu seu próprio capital em 2007, se uniu em 2008 à Bolsa Mercantil e de Futuros, pregão de commodities, e em 2017 à central de custódia de títulos Cetip. Nascia assim a B3.

Temos uma história que se confunde com todo o crescimento do mercado financeiro do Brasil, reconhecido hoje como um dos melhores do mundo”, afirma o presidente da B3, Gilson Finkelsztain.

Sobre o papel atual da Bolsa, ele o define como “uma avenida em que investidores e emissores se encontram, onde você viabiliza bons projetos, garante gestão de recursos de longo prazo, poupança, previdência”. E ressalta que os índices da Bolsa não deveriam ser confundidos com uma reação ao momento, mas indicação “do que virá”.

Na opinião de Finkelsztain, o que acontece no pregão “antecipa os movimentos da economia, dá a temperatura do mercado, e por isso você pode ler como o que vai acontecer amanhã”.

O presidente da B3 ressalta o papel da Bolsa lembrando os tensos momentos do início da pandemia de Covid-19, no começo de 2020.

Com o mundo atordoado —e vários setores econômicos afetados—, o “circuit breaker” (trava da comercialização de ações quando a queda chega aos 10%) precisou ser acionado em oito pregões, à espera de que os nervos dos agentes se acalmassem.

“Todo mundo estava perdido, muita gente falando que deveríamos fechar as bolsas, mas, não, ao contrário, elas tinham que estar abertas justamente para garantir que o papel de gestão de riscos e liquidez continuasse funcionando para o mercado de alguma forma continuar funcionando e por essa continuidade garantirmos que as coisas voltariam ao normal”, afirma.

Para Finkelsztain, promover o fechamento da Bolsa seria “como apagar a luz e deixar todo mundo cego, pois a gente viabiliza que a economia real siga seu curso e ajuste o cenário em que a roda dos negócios continue a girar”.

A opção por manter a roda girando à revelia da histeria dos mercados se refletiu nos resultados da B3, divulgados no início de março. A companhia declarou lucro líquido de R$ 4,2 bilhões, com crescimento de 52,98% em relação a 2020. A receita líquida no ano foi de R$ 8,9 bilhões.

Reflexo positivo também nos resultados do pregão: com 420 empresas listadas, o ADTV (volume médio diário negociado) de janeiro passado foi 69.4% maior que o alcançado em janeiro de 2020.

O ADTV é a soma da movimentação do mercado à vista, o mercado a termo e futuro de ações, e o de opções —ou seja, todos os ativos de renda variável que alimentam os índices.

Esse movimento chegou a ser fortemente impactado pela histeria dos primeiros meses da crise sanitária. Em abril, após os solavancos que levaram aos “circuit breakers” de março, o movimento caiu 20,4%.

Em maio, a queda foi ainda maior: de 9% em relação a abril e de 31,4% comparado a março.

Em junho, entretanto, a Bolsa retomou sua escala de alta no movimento. As IPOs (ofertas públicsa iniciais) levaram 27 novas companhias ao pregão —maior número desde 2007.

O retorno dos investidores se refletiu ainda na recuperação do Ibovespa, principal índice acionário do país, que no dia 15 de março deixou para trás as perdas do ano passado. Ao chegar aos 116.148,63 pontos, não só zerou a queda de 82% do final de março de 2020, como acumulou alta de 0,44% no ano.

“A manutenção das condições macro, a responsabilidade fiscal, os juros baixos, a inflação sob controle e uma agenda de ao menos perspectiva reformista têm feito diferença”, diz Finkelsztain.

Com a Selic (taxa básica de juros) no menor nível da história, o investidor foi buscar alternativas, até chegar à Bolsa. O presidente da B3 afirma que o o gatilho dos investidores foi acionado quando perceberam que precisavam se mexer para não deixar o dinheiro parado. A combinação de um cenário favorável em termos de tecnologia e acesso à informação deu ânimo a uma nova leva de pessoas, com maior disposição ao risco.

“A gente vem de uma geração que viveu planos econômicos e ameaças de confisco, mas a geração após os anos 1990 tem menos traumas, mais propensão ao risco”, diz o executivo.

Esse novo perfil fez com que o número de pessoas físicas na Bolsa, que por dez anos havia ficado em torno de 500 mil investidores, chegasse aos 3 milhões neste ano.

A probabilidade de o Banco Central aumentar a Selic, segundo o presidente da B3, não deve impactar negativamente esse movimento.

“Isso, de certa forma, já está precificado, foi ótimo estar testando o juro real negativo. Esses 2% a gente sabe que não são sustentáveis porque a inflação roda ao redor de 4%, é uma situação transitória, e a elevação não é um problema”, explica Finkelsztain.

O problema que pode vir, em sua avaliação, é um eventual descontrole fiscal. “Se o juro real vai subir, o mercado se antecipa. Agora, se subir além por conta de instabilidade fiscal ou descontrole absoluto das contas públicas, aí vamos voltar atrás e viver o que vivemos naqueles 10 anos de mercados estagnados.”

Sobre os recentes episódios vividos pela Bolsa de Nova York, com a alavancagem por meio de fóruns de internet das ações da varejista de videogames GameStop, Finkelsztain garante estar tranquilo.

“É muito difícil a gente ver um fenômeno similar no Brasil, porque temos mecanismos e regulação muito mais robustos que mercados mais desenvolvidos”, afirma. Ele explica que, pelas normas brasileiras, o “shot squeeze”, como é chamado o movimento que alavancou as ações da GameStop, é limitado, ao contrário dos Estados Unidos.

“Temos a síndrome de ser pequeno, de achar que tudo o que os mercados desenvolvidos fazem é correto, que eles estão sempre certos, mas agora a tendência é o contrário, eles é que vão revisar a ausência de regulação mais efetiva, que criou essas situações por lá”, explica Finkelsztain.

Ele lembra que costumava-se acusar o mercado de ser muito burocrático por registrar os derivativos na Cetip. Quando, em 2008, veio a crise do subprime (da “bolha” imobiliária nos Estados Unidos), “se constatou a importância de termos esses registros, esses controles”.

A crise dos derivativos começou em 2007, quando o índice Dow Jones da Bolsa de Valores de Nova York despencou por causa da concessão de empréstimos hipotecários de alto risco que levaria vários bancos americanos à insolvência, impactando os mercados em todo o mundo.

A B3 projeta para o futuro se aproximar mais do cliente. “Temos que construir nossa agenda a partir das necessidades e soluções que o cliente está buscando, não termos foco exclusivo na Bolsa”, diz o presidente.

Identificar quem é esse cliente, entretanto, não é tarefa simples. “Se eu perguntar quem é o cliente da Bolsa para dez pessoas diferentes, vou ter dez respostas diferentes. Essa é nossa dificuldade, o grande desafio é atender a suas expectativas”, diz Finkelsztain.

Outro grande desafio para a B3, segundo o executivo, é a implantação da agenda ESG, sigla em inglês para ações que as empresas devem tomar em relação a meio ambiente, sociedade e governança corporativa.

“Cada vez mais é uma agenda que vai entrar e se enraizar em tudo”, diz o executivo.


RAIO-X

Atual líder da empresa
Presidente da B3 desde maio de 2017, Gilson Finkelsztain Foi diretor-presidente da Cetip entre 2013 e 2017 e trabalhou por 20 anos em bancos internacionais como Citibank, Bank of America Merrill Lynch e Santander. É graduado em engenharia civil de produção pela PUC-Rio e pós-graduado pelo INSEAD-Advanced Management Program

Contexto histórica
A Bolsa surge em tempos de euforia com o fim da escravidão (1888) e a proclamação da República (1889). Mas também foi um momento de profundo desajuste econômico provocado pela transição

Visão de negócio 
A Bolsa quer ser o termômetro do mercado, o agente de antecipação do futuro da economia

Receita de longevidade 
A solidez da B3 está fundamentada em uma regulamentação cuidadosa, com aporte de tecnologia de ponta


Um dos pilares da longevidade de um negócio é a qualidade de suas esquipes, que vão passando o bastão geração após geração; as reportagens deste caderno são de autoria de jornalistas que simbolizam esse tipo de legado. ​

Luiza Pastor

É jornalista formada pela ECA-USP. Trabalhou como repórter e editora nos jornais Gazeta Mercantil, O Globo, Folha e O Estado de São Paulo, e nas revistas Senhor e Isto É Dinheiro. Autora, diretora e produtora de teatro, é autora dos livros Ilha Do Bananal: Encontro De Ecossistemas e Culturas e Legenda Erótica. É associated partner no Brasil do CIFS (Copenhagen Instutite for Futures Studies)


Luiza Pastor, Folha de São Paulo