quinta-feira, 29 de abril de 2021

"Governo maior, crise na fronteira e pandemia: os primeiros 100 dias de Biden na presidência dos EUA", por Isabella Mayer de Moura e Helen Mendes

 

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, completa 100 dias à frente da Casa Branca nesta semana| Foto: Brendan Smialowski / AFP


Joe Biden completa 100 dias na Casa Branca nesta quinta-feira (29). Desde a sua posse como presidente dos Estados Unidos em 20 de janeiro, o democrata já assinou mais decretos do que os seus três antecessores no mesmo período, anunciou pacotes trilionários e cumpriu algumas promessas de campanha - enquanto outras permanecem pendentes.

O balanço de 100 dias dos presidentes americanos é uma tradição desde os anos 1930, quando Franklin Delano Roosevelt assumiu o país em meio à Grande Depressão. O então presidente democrata falou à nação sobre as suas ações nos "primeiros 100 dias" como mandatário dos EUA, que incluíram uma série de medidas para conter a profunda crise econômica. Desde então, a data é um marco para presidentes americanos.

Biden também assumiu a presidência dos EUA em meio à uma crise histórica, causada pela pandemia de Covid-19. Saiba como o democrata tem se saído até aqui:


Expansão do governo federal

A crise econômica causada pela pandemia de Covid-19 deu ao novo governo a oportunidade de ser mais ousado nas pautas progressistas. Com o apoio de boa parte dos americanos, Biden está apostando em amplos - e caros - planos de revitalização econômica e expansão de programas sociais, enquanto propõe aumento de impostos sobre os mais ricos e corporações.

Um desses planos tem como objetivo revitalizar a infraestrutura dos Estados Unidos "para elevar a competitividade do país" frente ao avanço econômico da China e criar empregos de qualidade. A proposta, apresentada em março e batizada de "Plano de Empregos Americanos" reverteria parte dos cortes de impostos feitos pelo ex-presidente Donald Trump em 2017, aumentando a carga tributária federal sobre empresas (de 21% para 28%) e sobre americanos que ganham mais de US$ 400 mil por ano.

Contudo, críticos deste plano, que custaria US$ 2 trilhões, apontam que apenas metade deste valor seria realmente investido em infraestrutura. Ele também prevê US$ 174 bilhões em investimentos em postos para abastecimento de veículos elétricos; US$ 400 bilhões em cuidados domiciliares para idosos e deficientes; e US$ 25 bilhões em creches.

"Esse plano não apenas prejudicaria a economia e desperdiçaria quantias inimagináveis ​​de dinheiro dos contribuintes, mas também causaria danos permanentes à nossa democracia. Ao decretar programas federais para microgerenciar responsabilidades estaduais, locais e do setor privado, como água potável, internet, habitação, prédios escolares e rede elétrica, Washington teria controle demais sobre muitas coisas", escreveu David Ditch, pesquisador especializado em orçamento e política de transporte na Heritage Foundation.

Biden também está propondo a criação de um imposto mínimo global, cujo objetivo é evitar que empresas multinacionais transfiram seus lucros e empregos para países que oferecem baixos impostos.

Outro projeto de Biden que aumentaria o tamanho do governo federal americano é o recém-anunciado "Plano das Famílias Americanas", de US$ 1,8 trilhão, que, segundo o democrata, vai transformar e expandir fundamentalmente o papel do governo na vida dos americanos comuns. A proposta prevê investimentos em educação, saúde e cuidados infantis, inclusive dois anos de faculdade comunitária gratuita para milhões de jovens e acesso universal a pré-escolas de qualidade para crianças de 3 e 4 anos. Isso seria financiado com aumento de impostos sobre ganhos de capital.

Tanto o plano das famílias quanto o dos empregos ainda não foram aprovados pelo Congresso. Contudo, analistas políticos americanos esperam que os democratas, que controlam a Câmara e o Senado, consigam aprová-los com uma maioria simples, sem o apoio dos republicanos, assim como ocorreu durante a aprovação do pacote de estímulo econômico de US$ 1,9 trilhão em março deste ano, que concedeu mais uma rodada de auxílio emergencial a milhões de americanos, expandiu benefícios aos desempregados e forneceu ajuda financeira a estados e municípios. Esse plano, que também continha outras propostas progressistas além de melhorar a resposta à pandemia, aumentou o déficit fiscal do governo americano em cerca de 15% do PIB dos EUA, segundo a OCDE.

É preciso fazer uma ressalva, porém. A pandemia deu início a uma era de maior gastos governamentais nos Estados Unidos. No ano passado, durante a presidência de Trump, duas leis, que juntas totalizaram US$ 3,2 trilhões, foram aprovadas para prestar auxílio aos americanos e empresas durante a pandemia. As propostas de Biden, porém, são muito diferentes e carregadas de pautas progressistas que expandem a influência do governo federal sobre a economia e a vida dos cidadãos.

"Não há dúvida de que a hostilidade da era Reagan ao governo e a tendência do Partido Democrata para o conservadorismo fiscal morreram", disse ao Financial Times Francis Fukuyama, um dos principais cientistas políticos dos Estados Unidos. "Mas, sem dúvida, a pandemia fez mais para acabar com isso do que a eleição [de Biden]".

No orçamento federal para 2022, Biden propôs aumentar os gastos com educação (40%), saúde e assistência social (23%) e comércio (27%). O governo democrata também prevê um orçamento maior para a Agência de Proteção Ambiental e para a Fundação Nacional da Ciência.


Pandemia

Uma das metas mais comemoradas pela administração democrata é o número de doses de vacinas contra Covid-19 aplicadas no país. Ao tomar posse, Biden prometeu a aplicação de 100 milhões de doses nos primeiros 100 dias de governo – o que basicamente seria manter o ritmo de vacinação observado nos últimos dias da presidência de Trump. Porém, dias atrás, Biden dobrou a meta, prometendo aplicar 200 milhões de doses em seus primeiros 100 dias como presidente. Até agora, mais de 230 milhões de doses já foram aplicadas e 98 milhões de americanos já estão completamente imunizados.

O número de casos de Covid-19 também caiu drasticamente desde o começo do ano. Quando Biden assumiu, os Estados Unidos estavam registrando cerca de 180 mil infecções diariamente. Cem dias depois, são cerca de 54 mil novos casos por dia. Essa queda, porém, já vinha ocorrendo desde 11 de janeiro, quando a pandemia no país atingiu o pico, portanto, não pode ser atribuída à nova gestão, mas sim a uma série de fatores, como o fim da época de festas de fim de ano, restrições de circulação que foram impostas em algumas cidades e estados.

Além de acelerar a vacinação, Biden incentivou o uso de máscaras desde que se tornou presidente – apesar de não ter poder para impor a obrigatoriedade do acessório de proteção em território nacional. O que ele fez, então, foi tornar obrigatório o uso das máscaras em prédios do governo federal. Atualmente, cerca de 25 dos 50 estados americanos exigem o uso da proteção facial em algumas situações.

Ainda na área da saúde, mas nas relações exteriores, os Estados Unidos voltaram à Organização Mundial da Saúde sob o comando do democrata, com o objetivo de fortalecer a resposta global à pandemia de Covid-19 e pressionar a China dentro da organização.


Propostas climáticas

As pautas ambientais têm tanto peso quanto as sociais no governo do Biden. Na verdade, elas estão profundamente entrelaçadas ao plano econômico do democrata, que prevê bilhões de dólares em investimentos em energias renováveis e outras iniciativas ecologicamente corretas.

Nestes primeiros dias de governo, uma das medidas que mais despertou críticas por parte dos republicanos foi a decisão de Biden de barrar a construção do oleoduto Keystone XL, um grande projeto de engenharia que levaria milhares de barris de petróleo de Alberta, no Canadá, ao Texas, passando por vários estados americanos ao longo de 2,7 mil quilômetros. A decisão gerou tensão com o governo canadense, mas Biden afirma que o projeto "não é consistente com os imperativos econômicos e climáticos de minha administração". Nesta semana, o senador republicano Mike Crapo afirmou que cerca de mil empregos foram perdidos com o cancelamento da permissão de construção do oleoduto.

Ao assumir a presidência, Biden voltou ao Acordo de Paris e recentemente definiu uma meta mais ousada para redução da emissão de gases causadores do efeito estufa nos Estados Unidos: até 2030, o país pretende alcançar uma redução de 50 a 52% dos níveis de emissão de gases poluentes em relação aos registrados em 2005. Além disso, o presidente propôs alcançar um setor energético livre de poluição de carbono até 2035 e uma economia com saldo líquido nulo de emissões de carbono até 2050. Ele, porém, não deu detalhes sobre como essas metas serão alcançadas.


Imigração

Assim que chegou à Casa Branca, Biden reverteu algumas políticas de imigração do governo Trump. Uma ordem executiva assinada pelo democrata revogou a proibição de entrada de viajantes de alguns países de maioria muçulmana, criada pelo seu antecessor. Ele também encerrou o financiamento para a construção do muro na fronteira com o México e anulou uma ordem que expandia os critérios para deportação, passando a priorizar as deportações de imigrantes que representam ameaça de segurança ou risco à saúde pública.

Porém, Biden está longe de cumprir a promessa feita durante sua campanha de aumentar o limite de refugiados aceitos por ano nos EUA para 125 mil, dos atuais 15 mil estabelecidos por Trump.

Em fevereiro, a Casa Branca anunciou que esse teto iria aumentar para 62.500 refugiados (pessoas que fogem de ameaças em seus países) aceitos em um ano. Mas, em abril, o governo Biden disse que iria manter o limite anual de 15 mil do governo Trump, o que gerou muitas críticas dos membros do seu próprio partido. Após a reação negativa, a Casa Branca recuou e disse que anunciará em 15 de maio o novo limite, que deve ser maior do que o atual, mas não deve chegar a 62.500.

A crise na fronteira sul do país também continua um grande desafio para o governo americano. Apenas em março, mais de 172 mil migrantes foram detidos ao tentar entrar nos Estados Unidos. O fluxo de migrantes que chegam à fronteira com o México aumentou, especialmente o de crianças e adolescentes desacompanhados, que têm sido mantidos em estações da Patrulha da Fronteira. Esses abrigos temporários têm condições parecidas com as de prisões e não são adequadas para crianças. O Departamento de Serviços de Saúde e Humanos, responsável pelos cuidados com crianças migrantes desacompanhadas, anunciou a abertura de 11 instalações temporárias para retirar as crianças dos abrigos lotados da Patrulha da Fronteira.

Em campanha, Biden também prometeu apresentar uma legislação para criar um caminho para a cidadania de 11 milhões de imigrantes não documentados. Ele enviou uma proposta ao Congresso com os detalhes dessa legislação logo após tomar posse, mas ainda há dúvidas sobre o futuro da reforma na imigração, que é uma questão divisiva no país.


Política externa

Com o lema "A América está de volta", Biden tem no foco de sua política de relações externas a maior presença dos EUA em organismos multilaterais.

Aliados do Ocidente celebraram a intenção do novo governo democrata de reforçar alianças e de reafirmar o papel global dos EUA. Mas também há ceticismo por parte de países que estavam satisfeitos com as políticas de Trump, como a postura dura adotada pelo republicano em relação à China e os acordos de paz fechados entre Israel e países do mundo árabe com mediação dos EUA.

A estratégia do governo de Biden para lidar com a China, principal adversário dos EUA, ainda não está bem detalhada, apesar de Biden descrever a disputa entre os dois países como "uma batalha entre a democracia e a autocracia pelo controle da economia global no século 21". Após o discurso de Biden ao Congresso americano na quarta-feira, o senador republicano Mitt Romney disse a jornalistas: "Eu não acredito que nós já temos, como nação, uma estratégia abrangente para lidar com a intenção da China de dominar o mundo".

Biden se comprometeu a retirar todas as tropas americanas do Afeganistão antes de 11 de setembro, data que marca o aniversário de 20 anos dos ataques terroristas contra o World Trade Center e o Pentágono. O movimento de retirada do Afeganistão já havia sido iniciado no governo Trump; quando Biden assumiu, o número de militares americanos no país asiático era o menor desde 2001. A saída faz parte de um acordo firmado com o Talibã durante a administração Trump.

Biden também deu os primeiros passos para que os EUA retornem ao acordo nuclear com o Irã que foi implementado em 2015, no governo Obama, e abandonado por Trump. As negociações foram retomadas em abril por representantes dos EUA e do Irã em Viena.

O governo Biden também impôs sanções contra autoridades da Rússia e expulsou diplomatas russos, em resposta à ataques cibernéticos, à interferência nas eleições americanas e às ações militares russas na Crimeia. O presidente também criticou a prisão do líder opositor russo Alexey Navalny.

Mas, apesar das promessas de colocar os direitos humanos no centro de sua política externa, Biden não responsabilizou diretamente o herdeiro da Coroa Saudita, Mohammed bin Salman, pelo assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, mesmo quando relatórios de inteligência dos EUA comprovando a participação do príncipe no crime foram divulgados.

.Gazeta do Povo