sexta-feira, 5 de março de 2021

"Cinco vezes em que o STF desorganizou o Brasil", mostra Sílvio Navarro

Sem controle externo atuante e cada vez mais ativistas, os '11 escolhidos' de toga extrapolam o papel de guardiões da Constituição e passam a decidir os rumos do país





Em meio às manchetes olímpicas do placar do vírus na pandemia e do noticiário com as tragédias que nos assaltam todos os dias, o brasileiro também se acostumou a ler diariamente: “O STF decidiu hoje que…”. São as já rotineiras imposições do Supremo Tribunal Federal (STF), instância máxima do Judiciário do país, erguido para ser o guardião da Constituição, mas que, por força dos seus onze iluminados, se tornou um balcão para qualquer coisa. Ocorre que essa “qualquer coisa” tem custado cada vez mais caro para a nossa jovem democracia e as liberdades individuais.

Não, não é exagero. No mês passado, o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato na Corte, intercalou sua análise sobre crimes de lavagem de dinheiro e corrupção de engravatados com o arquivamento de um inquérito contra uma paraibana de 52 anos, da cidade de Monteiro, acusada de furtar um pedaço de queijo numa padaria — ele acatou o habeas corpus da Defensoria Pública. O que o caso demonstra, para além da burocracia judiciária? Que o STF, hoje, tem poder decisório sobre tudo e pode invadir barreiras quando bem entende — e isso não tem sido nada bom para a ordem institucional.

Seguem abaixo alguns exemplos.

1)  A reviravolta da prisão em segunda instância

Para muitos juristas conceituados no país, a decisão do plenário do STF de novembro de 2019 segundo a qual é necessário trânsito em julgado de uma ação para o cumprimento da pena é um marco da impunidade no país. Na ocasião, votaram a favor desse entendimento os ministros Marco Aurélio Mello (relator), Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli. Desse quinteto, o então decano Celso de Mello se aposentou, dando vaga a Kássio Nunes, que rapidamente se alinhou aos demais em votos subsequentes.

Desde então, prevaleceu o entendimento de que a execução da pena (artigo 283 do Código de Processo Penal) viola o princípio da presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal). Vale lembrar que a decisão beneficiou a banca dos advogados de defesa de condenados como Lula, José Dirceu e outros 5 mil bandidos trancafiados por crimes diversos.

“O maior dano do STF à Nação foi a decisão sobre a prisão após trânsito em julgado. É um caso único no mundo, da Somália à Suécia, em nenhum lugar existe isso. Criaram-se no Brasil o paraíso do crime e a ditadura do STF”, avalia Modesto Carvalhosa, um dos maiores juristas do país e um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff.

2) Pandemia e judicialização da saúde: todo o poder aos governadores e prefeitos

Em abril do ano passado, em decisão unânime, o Supremo delegou aos governadores e prefeitos o poder de baixar medidas restritivas no combate à pandemia. Foi essa canetada que descortinou o lado autoritário de dezenas de eleitos pelo país e realçou no mapa cidades como Araraquara, no interior de São Paulo, onde o prefeito petista Edinho Silva trocou o uniforme de tesoureiro de partido corrupto pelo de czar da Rodovia Washington Luís. O coração financeiro e mais importante Estado do país copiou Araraquara.

A decisão do STF ainda causou confusão e ampliou a guerra política sobre a compra de vacinas contra a covid-19: governadores como João Doria (SP) tentam, dia após dia, emplacar a imagem de que lutaram para obter vacinas ante a demora do governo federal. Mais: impõem lockdowns severos que castigam a economia local e multiplicam desempregados sem CPF cadastrado na fila do auxílio emergencial, insistindo numa bula ineficaz de combate à propagação do vírus chinês.

3) Usina de HCs e a soltura de André do Rap

Já foi até piada, mas é verdade: quando a Operação Lava Jato ou o Ministério Público e a Polícia Federal conseguiam, finalmente, prender um corrupto, o STF soltava — se caísse no gabinete do ministro Gilmar Mendes era ainda mais rápido. O melhor exemplo é o empresário Jacob Barata Filho, do ramo de transportes públicos no Rio de Janeiro, suspeito de integrar um esquema de desvio de R$ 260 milhões. Gilmar Mendes mandou soltá-lo três vezes. Na época, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, enviou à ex-presidente do STF Cármen Lúcia uma solicitação para que os pedidos de habeas corpus (HCs) de Barata não parassem mais na mesa de Mendes. Motivo: Gilmar era padrinho de casamento da filha de Barata e mantinha longa amizade com a família.

Outro fato estridente foi a soltura do narcotraficante André do Rap (André Oliveira Macedo), um dos líderes do PCC, pelo ministro Marco Aurélio Mello. Segundo o novo decano da Corte, após o término do prazo de 90 dias, a prisão preventiva se torna ilegal — mesmo que se trate de um dos maiores criminosos da América.

“Iniludivelmente tem-se preceito que atende, em primeiro lugar, a dignidade do homem, do custodiado, que não pode ser jogado, ao que o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo disse, às masmorras, esquecido como se animal fosse”, disse o ministro, citando o ex-ministro da Justiça de Dilma Rousseff, o deputado petista Cardozo.

O fato é que a libertação de um bandido de altíssimo calibre deixou dúvidas sobre a maneira como os pedidos de habeas corpus são sorteados na Corte — e como isso determina o desfecho deles.

 4) Prisão do deputado Daniel Silveira e o inquérito do fim do mundo

Há quase 20 dias, o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) está preso pela publicação de um vídeo na internet com ofensas grosseiras ao STF. A história é bem conhecida: o presidente da Corte, Luiz Fux, não gostou do que viu e encaminhou o material ao colega Alexandre de Moraes, relator do inquérito sem pé nem cabeça das Fake News (ou inquérito do fim do mundo, como é chamado em Brasília). Sem escopo claro, sem respaldo do Ministério Público e criado para servir de colete à prova de críticas ao STF, o inquérito tem sido usado como ferramenta de intimidação e prisões arbitrárias, como foi a de Silveira.

O deputado foi detido “em flagrante delito” com base na Lei 7.170/83, um entulho da ditadura militar que sobreviveu à Constituição de 1988. No vídeo de péssimo gosto, o deputado ataca os ministros e defende o Ato Institucional Nº 5, uma ferida que jamais deveria ser revisitada no retrovisor da história do país. Preso e abandonado pelos seus pares na Câmara, pediu desculpas. Mas, a despeito da conduta equivocada, que deveria ser analisada pelos caminhos do Legislativo, o episódio virou um exemplo do autoritarismo do Olimpo do STF e segue encarcerado.

“Temos o primeiro preso político do país desde a redemocratização. Em que pesem as loucuras que o deputado falou, a democracia é um regime que admite críticas a ela. Essa é a diferença entre democracia e autoritarismo. O contrário é o que acontece em Cuba ou na Venezuela”, afirma Modesto Carvalhosa.

Para muitos deputados com mais de um mandato, a decisão de Alexandre de Moraes, combinada previamente e referendada pelo plenário da Corte, pôs uma faca no pescoço dos parlamentares — e pelo menos um terço dos eleitos tem rabo preso com denúncias aqui e ali.

5) As intervenções no poder econômico

Não bastasse tudo isso, os ministros do STF são chamados para resolver sobre o bolso do pagador de impostos, royalties estatais, fundos de previdência e a agenda de privatizações — foi necessário o aval dos magistrados para dar sequência à privatização da Casa da Moeda, do Serpro, entre outros dinossauros da União, por exemplo.

“O risco institucional é a incerteza do cumprimento das regras entre as partes. Diante do ativismo político do STF nos últimos tempos, esse risco entrou no radar dos investidores, trazendo impactos econômicos para a população”, diz o economista Alan Ghani, doutor em Finanças pela FEA-USP, com especialização na Universidade do Texas em San Antonio.

Para Ghani, outra interferência suprema recente foi a proibição de que Estados e municípios cortem salários de servidores durante a pandemia. “A decisão é um tapa na cara dos trabalhadores da iniciativa privada que perderam seu emprego ou tiveram que reduzir seus salários, por meio de acordos, para manter a sua sobrevivência.”

Em 2020, o ano que não acabou, o Supremo proferiu 99,3 mil decisões. É provável, muito provável, que boa parte delas tenha colaborado só para desorganizar o país.

Revista Oeste