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Reunidos numa espécie de frente anti-PT na eleição de 2018, esses dois grupos jamais chegaram a um acordo em relação aos seus objetivos políticos no país. “As ideias pelas quais os homens vivem e encontram sua identidade local — ideias de aliança, de país ou nação, de religião e obrigação — são, para o socialista, mera ideologia e, para o liberal, uma questão de “escolha privada” a ser respeitada pelo Estado somente porque não importa realmente ao Estado. Somente em poucos lugares da América e Europa uma pessoa pode se dizer conservadora e esperar ser levada a sério.” (Roger Scruton, “Como um conservador deve se opor ao socialismo e liberalismo”)
Embora, da perspectiva da esquerda, a direita brasileira seja quase sempre encarada como um bloco monolítico, quem acompanha de perto essa corrente política sabe da grande variedade doutrinal e axiológica existente em seu meio. Um dos embates mais frequentes nesse ambiente é o que opõe, por exemplo, os “conservadores” e os “liberais”.
Reunidos numa espécie de frente anti-PT na eleição de 2018, vencida pelo candidato de direita Jair Bolsonaro, esses dois grupos jamais chegaram a um acordo em relação ao significado e aos objetivos de uma direita política no Brasil. E, uma vez que essa direita foi apeada de seu breve período no governo após a tomada (ou retomada) do poder por parte da esquerda revolucionária, as diferenças de outrora acabaram sendo realçadas, agora envoltas numa frenética busca por culpados pela derrota política.
Como testemunha recente de um desses debates internos, gostaria no texto de hoje de dar a minha versão sobre as principais diferenças a oporem o liberalismo e o conservadorismo brasileiros. E gostaria de começar a explicar essas diferenças a partir de semelhanças que, de uma perspectiva externa à direita, são tidas como evidentes. Para isso, parto de um antigo artigo escrito pelo economista de esquerda Reinaldo Gonçalves, intitulado “Por que a esquerda tem mais razões do que a direita para ser a favor do impedimento de Dilma e da punição de Lula?”.
Como se depreende do título, o artigo é de uma época em que a Lava Jato estava em seu auge, revelando as entranhas dos escândalos de corrupção e fazendo com que parte da esquerda brasileira buscasse alternativas a Lula e ao PT. O autor fora filiado ao PT durante 20 anos, tendo rompido com o partido em 2005, dizendo-se cada vez mais arrependido e envergonhado por essa longa filiação. Diretamente ligada à proposta de fundação de uma nova esquerda pós-PT, sua compreensão algo incompleta da direita brasileira — mormente confundida com o liberalismo — ajuda-nos a esclarecer alguns dos pontos de atrito entre liberais e conservadores. Gonçalves começa por adotar alguns procedimentos com vistas à obtenção de precisão conceitual sobre a dicotomia esquerda versus direita.
O primeiro procedimento é o que ele chama de hipóteses simplificadoras: “O regime político é a democracia e o modo de produção é o capitalismo. Essas duas hipóteses excluem forças políticas antidemocráticas de esquerda (stalinista) e de direita (fascista) e sistemas econômicos em que a maior parte dos meios de produção é controlada pelo Estado.” Já o terceiro procedimento é chamado de tipologia flexível:
“A tipologia é flexível e abarca os seguintes campos políticos: esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita e direita. Os dois primeiros podem ser incluídos na categoria de forças progressistas enquanto os dois últimos estão na categoria genérica de forças conservadoras. O “centro” é a zona de sombra entre progressistas e conservadores. A distinção entre progressistas e conservadores é definida pela propensão a mudanças e, principalmente, pela natureza e pela fonte das mudanças.”
Eu não faria objeções relevantes ao primeiro e ao terceiro procedimentos. Já quanto ao segundo, que o autor denomina marcadores, seria preciso pontuar algumas coisas. Os principais marcadores utilizados pelo autor são o mercado e o Estado. Essas instituições, diz ele, “são fundamentais para se configurar os campos da esquerda e da direita”. Digo eu, todavia, que essa é uma meiaverdade. É fato que a oposição mercado versus Estado define basicamente a divergência entre liberais e esquerdistas (social-democratas e/ou socialistas).
O problema começa quando o autor opta por tratar liberais e conservadores como um bloco homogêneo (“direita”), incorrendo num equívoco teórico comum, o qual, de partida, distorce consideravelmente o debate político. O problema é que a oposição “Estado versus mercado” não contempla o campo conservador, para o qual seria preciso inserir aí, no mínimo, dois outros marcadores fundamentais: a família e a comunidade (moral e/ou religiosa). Nesse sentido, teríamos os conservadores abrindo duas frentes de divergência, uma com a esquerda (Estado versus família ou comunidade), outra com os liberais (mercado versus família ou comunidade). Trata-se de um erro conceitual equacionar “conservadorismo” com mercado autorregulado, tal como o faz Gonçalves no Quadro 1 de seu artigo:
Para o conservadorismo (e aqui penso sobretudo em sua vertente anglo-americana), o mercado também deve ser, de certa maneira, “regulado”. Não, evidentemente, pelo Estado — o qual, de acordo com a filosofia política conservadora (ver, por exemplo, a de Bertrand de Jouvenel), tende “naturalmente” a um temível agigantamento —, mas pelos valores morais e religiosos compartilhados pela comunidade, e sedimentados no seio da família.
E, sim, a família aqui é a família monogâmica tradicional. Embora o conservador reconheça a legitimidade (civil, legal, afetiva) dos novos arranjos familiares surgidos nas sociedades contemporâneas, ele repudia o combate ideológico movido pela esquerda contra o conceito de família tradicional, combate que resulta em aberrações culturais tais como, entre outras, a abolição do Dia dos Pais e do Dia das Mães no calendário escolar de boa parte do Ocidente liberal. O conservador tem apego à realidade acima das ideias, e repugna-lhe a hipótese de supressão de porções da realidade e de tradições histórico-culturais na base da canetada de algum engenheiro social “progressista”.
Os conservadores são, sem dúvida, favoráveis ao capitalismo e à liberdade de mercado. Mas entendem que o capitalismo não pode estar dissociado da consolidação cultural de uma determinada antropologia filosófica, ou concepção de homem. Sem isso, corre-se o risco de descambarmos para as formas mais cruas e selvagens de materialismo e mercantilismo, justamente daquele tipo previsto por Marx em sua profecia autorrealizável. Uma das grandes brigas entre conservadores e ultraliberais (por vezes chamados “libertários”) é que, para os primeiros, nem tudo deveria poder ser comercializado, não se restringindo a uma questão de liberdade individual de escolha.
As escolhas dos indivíduos devem se basear num senso de responsabilidade para com o próximo, sendo inseparáveis de um aprimorado discernimento moral. Sobre a divergência entre a defesa liberal da “liberdade” e o apreço conservador pela “ordem” (condição, segundo essa filosofia, tanto das liberdades concretas quanto da propriedade privada), recomendo, aliás, o primeiro capítulo de O Que é Conservadorismo?, do filósofo britânico Roger Scruton.
Os conservadores, se são fundamentalmente anticoletivistas, tampouco endossam aquele individualismo de cunho utilitarista quase sempre subjacente ao pensamento liberal. Para o conservador, a liberdade não pode ser um princípio autofundante, caso em que viria a se degenerar no seu exato oposto: a liberdade de escravizar os outros ou de se autoescravizar por apetites irrefreados. A perspectiva conservadora sugere que a liberdade deve vir temperada com a ordem. E a ordem aqui não é apenas a ordem externa, de natureza política e social, mas, sobretudo, a ordem interna da alma — conceito tradicional da antropologia filosófica clássica e cristã, depois rejeitada pela antropologia filosófica moderna (iluminista, materialista, secularista e imanentista).
“A pólis é o homem escrito em letras maiúsculas” — ensina Platão na República (368 c-d), uma lição que Eric Voegelin chamou de princípio antropológico, um axioma da filosofia política conservadora. John Adams, segundo presidente americano, e o mais conservador dos “Founding Fathers”, ilustrou-o bem, ao escrever em 1798 sobre a Constituição Americana: “Não há governos capazes de lidar com paixões humanas desenfreadas, imunes à moralidade e à religião.
A avareza, a ambição, o desejo de vingança ou a luxúria poderiam romper as sólidas amarras de nossa Constituição qual uma baleia através de uma rede de pesca. A nossa Constituição foi feita exclusivamente para um povo moral e religioso. Ela é totalmente inadequada para qualquer outro.” Trocando em miúdos, o que Adams estava dizendo era que governos e códigos de leis não são formas puras e autônomas, aplicáveis sobre qualquer “substância” sociopolítica. O mesmo vale para sistemas econômicos, acrescento eu.
Nessa perspectiva, uma comunidade moralmente sã e ordenada, formada por homens maduros e responsáveis (spoudaios, na terminologia aristotélica), é a precondição essencial para o bom funcionamento de sistemas políticos e econômicos. Há aí a intuição fundamental de que, aquém da política e do progresso tecnocientífico, existe uma ordem moral permanente e eterna que preside as mudanças sociais.
É o apego fundamental àquela ordem — que Edmund Burke chamava de “o contrato da sociedade eterna”, G. K. Chesterton, de “democracia dos mortos”, e T. S. Eliot, de “estrato pré-político” — que gera o tradicional ceticismo conservador em face da ação política. Não que o conservador não reconheça a sua importância, assim como a importância crucial da autoridade, mas tende a olhar a política de maneira pragmática e circunstancial, jamais doutrinária e fundada sobre princípios abstratos ou declarações grandiloquentes de intenções (“justiça”, “liberdade”, “igualdade”, “democracia” etc.).
Como numa famosa definição de Michael Oakeshott: “Ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o tentado ao não tentado, o facto ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, a felicidade presente à utópica. As relações e lealdades familiares serão preferíveis ao fascínio de vínculos mais proveitosos; comprar e expandir será menos importante que conservar, cultivar e desfrutar; a dor da perda será maior que a excitação da novidade ou da promessa.
É ser igual ao nosso próprio destino, é viver ao nível dos meios, contentar-se com a necessidade de maior perfeição pessoal como com as circunstâncias que nos rodeiam.” Portanto, é impossível falar de conservadorismo sem levar em conta a importância da dimensão religiosa para essa filosofia. Nesse sentido, liberais e esquerdistas estão bem mais próximos entre si, ambos herdeiros confessos, mais ou menos orgulhosos, da antropologia filosófica secularista e da filosofia hegeliana da história. A tradição conservadora, por outro lado, vê nestas antropologia e filosofia da história bases nocivas para a vida política. O leitor encontrará uma boa exposição crítica da antropologia filosófica secularista, do ponto de vista conservador, no livro O Drama do Humanismo Ateísta, do filósofo jesuíta Henri de Lubac.
Não estou querendo dizer com tudo isso que todo conservador seja, necessariamente, religioso. Oakeshott, por exemplo, foi um expoente do conservadorismo secular. Mas é raro encontrar conservadores que não atentem para a importância do resgate dos valores cristãos como força cultural e civilizacional. É importante enfatizar que, ao contrário dos liberais e dos esquerdistas, o conservador entende a religião não como questão meramente privada, mas como uma conquista cultural que deve influir na esfera pública. Isso não se confunde, em hipótese alguma, com negar a laicidade do Estado.
Trata-se precisamente do contrário. O conservador crê na separação essencial entre Estado e sociedade civil, e rejeita qualquer mistura entre religião e política, sobretudo aquela que, seguindo a profecia de Ludwig Feuerbach, resultaria na atribuição de um caráter sagrado à ação política. O conservador afirma, aliás, e com razão, que a separação entre religião e política é uma herança da matriz cultural cristã, virtualmente inaplicável fora dela. Daí a fragilidade da posição liberal no enfrentamento às correntes marxistas e neomarxistas para além do aspecto econômico, uma vez que, frequentemente presos no dogmatismo secularista, não percebem que a política de tipo messiânica representada pelos movimentos socialistas é o principal fruto venenoso da descristianização da cultura.
Revista Oeste