Liz Magill, em foto de junho de 2023: reitora da University of Pennsylvania pediu demissão após comentários sobre antissemitismo no Congresso dos Estados Unidos.| Foto: Facebook/página oficial University of Pennsylvania
A brutalidade terrorista do Hamas, que em 7 de outubro invadiu território israelense, matando mais de mil pessoas – 70% delas civis – e sequestrando cerca de 250 outras vítimas, disparou uma onda de antissemitismo como poucas vezes se viu desde o fim da Segunda Guerra Mundial e a revelação dos horrores do Holocausto nazista. Em diversos países – inclusive no Brasil –, as ruas foram tomadas por pessoas que não se limitaram a defender posições legítimas, como a solução de dois Estados para encerrar de vez a Questão Palestina; ou a fazer críticas possíveis, como a eventuais crimes de guerra supostamente cometidos por Israel em sua campanha para neutralizar a ameaça dos terroristas.
Os protestos se tornaram um endosso explícito ao Hamas, que tem como plataforma o extermínio dos judeus e o fim do Estado de Israel – em outras palavras, a defesa do terrorismo e do genocídio.
Mas, se em algumas situações a tragédia moral que endossa a desumanização do outro não chega a surpreender, como no caso de setores da esquerda, em outros ele assume feições tão surpreendentes quanto estarrecedoras. Foi o que aconteceu no último dia 5 de dezembro, quando as reitoras de três das principais universidades norte-americanas – Sally Kornbluth, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT); Liz Magill, da Universidade da Pensilvânia (Penn); e Claudine Gay, da Universidade Harvard – compareceram à Câmara de Representantes do Congresso norte-americano para uma audiência sobre manifestações antissemitas nos ambientes universitários.
Questionadas sobre se a defesa do genocídio de judeus constituiria assédio ou bullying de acordo com os regulamentos das respectivas universidades, as reitoras tergiversaram; os deputados seguiram pressionando até que Magill foi a primeira a verbalizar o absurdo: “depende do contexto”, disse, sendo seguida por Gay e Kornbluth.
Enquanto deixam abertas as portas à defesa do genocídio “dependendo do contexto”, as universidades correm para punir severamente professores e alunos que se desviem um milímetro dos dogmas do identitarismo woke
Em que “contexto”, temos de perguntar, a defesa do genocídio seria moralmente aceitável? As reitoras evitariam tanto dar uma resposta clara e terminariam com esse “depende” se, em vez de judeus, estivéssemos falando de pedidos pelo extermínio de negros, mulheres, muçulmanos ou homossexuais?
Não é preciso ter uma imaginação muito fértil para presumirmos que, se fosse outro o grupo cujo genocídio fosse defendido nas manifestações, as reitoras nem esperariam o fim da pergunta para manifestar seu repúdio veemente e prometer as punições mais severas; ou que, caso respondessem com um “depende do contexto” a perguntas sobre a defesa da eliminação de outros grupos étnicos, religiosos ou de gênero, elas estariam à procura de um novo emprego no momento seguinte.
Não que a pressão pela demissão das três reitoras não tivesse existido – pelo contrário: políticos republicanos e democratas, além de intelectuais de vários lados do espectro político-ideológico, manifestaram seu descontentamento com o posicionamento das reitoras e afirmaram que elas não tinham mais condições morais de permanecer em seus postos. No entanto, elas resistiram – ao menos no caso de Harvard, com direito a carta assinada por centenas de professores e ex-alunos em defesa da reitora, demonstrando que sua resposta, no fim das contas, era apenas o reflexo do ambiente que perpassa toda a universidade.
A única a cair até agora foi Magill, por razões financeiras: um figurão de Wall Street ameaçou retirar sua contribuição de US$ 100 milhões à Penn se a reitora não deixasse o cargo, o que acabou acontecendo em 9 de dezembro, quatro dias depois da audiência no Congresso.
A resposta das reitoras já seria absurda em si mesma, já que não existe “contexto” possível que justifique a defesa de um genocídio, ainda que ela não transborde para agressões concretas a estudantes ou professores judeus – a primeira tentativa de desviar da pergunta da deputada Elise Stefanik (ela mesma uma egressa de Harvard) havia sido justamente a de dizer que os atos de antissemitismo seriam punidos.
Mas ela ganhou uma camada adicional de surrealismo por vir embebida em uma defesa da liberdade de expressão. Se por um lado é verdade que os Estados Unidos têm um regime jurídico de proteção quase absoluta da liberdade de expressão, também é verdade que as universidades norte-americanas têm sido um ambiente bastante hostil a essa liberdade.
Enquanto deixam abertas as portas à defesa do genocídio “dependendo do contexto”, as universidades da Ivy League e outras instituições de ensino superior correm para punir severamente professores e alunos que se desviem um milímetro dos dogmas do identitarismo woke ou “errem” um pronome pelo qual alguém queira ser chamado, ou então “cancelam” autores essenciais do cânone ocidental, como William Shakespeare, cujo gênio literário fica subordinado ao fato de ele ser um homem branco.
Demissões e cancelamento de eventos por suposto “discurso de ódio” são tão comuns que, em abril deste ano, professores de Harvard publicaram um manifesto em defesa da liberdade acadêmica na instituição; meses depois, Harvard e Penn figuraram entre as universidades mais repressoras da liberdade de expressão em uma lista de 250 instituições.
A mesma entidade que levantou o ranking, a Fundação pelos Direitos e Expressão Individuais (Fire, na sigla em inglês), apurou que 94% dos estudantes de Harvard entrevistados disseram já ter se policiado em conversas com colegas, e 88% sentem que não podem manifestar determinadas opiniões por medo de repercussão negativa ou punições – um medo que, se depender de Gay, Magill e Kornbluth, os estudantes defensores do Hamas não precisam ter.
Inaceitável e hipócrita, portanto, o posicionamento do trio de reitoras ouvido pelo Congresso norte-americano. Inaceitável, porque considera permissível um discurso que conclama ao extermínio de todo um grupo étnico-religioso – ainda que tal discurso possa ser legalmente permitido nos Estados Unidos, é sem dúvida moralmente indefensável.
E hipócrita, porque apela à defesa de uma liberdade que é consistentemente negada pelas próprias universidades em vários outros casos nos quais pune-se por “discurso de ódio” manifestações perfeitamente legítimas, mas que destoam do pensamento único permitido pela militância identitária que dominou a academia. Cria-se, assim, as condições para a deformação moral de um dos ambientes cuja essência é a busca pela verdade, com liberdade e respeito pela dignidade humana.
Gazeta do Povo