Ascânio Seleme, colunista do jornal O Globo, assina um texto delirante intitulado “É hora de perdoar o PT” onde afirma que um terço da população (eleitoral) brasileira é sistematicamente rejeitada por apoiar a sigla. Apostando nessa linha de argumentação, seu Seleme defende que o PT precisa ser readmitido ao debate nacional, como se a rejeição fosse algo imposto por um agente externo e não ocasionado exclusivamente pela corrupção de integrantes do próprio partido.
Espertamente, seu Seleme reconhece que houve malfeitos cometidos pelo partido e que já foram amplamente punidos, algo que está longe de ser verdade quando observamos que lideranças do partido, condenadas por corrupção, continuam soltas por conta do revisionismo de uma suprema corte cuja composição atual, coincidentemente, foi configurada quase que inteiramente durante os governos do PT. Isso sem falar nas quase incontáveis figuras secundárias, mas igualmente eminentes dentro do partido, que ainda respondem a processos na justiça, bem como a tantas outras que podem vir a ser por conta de investigações que, lamentavelmente, correm o risco de se tornarem processos passíveis de prescrição pela lentidão da suprema corte.
O maior problema do texto do colunista é, contudo, o de assumir um caráter dogmático sem apresentar qualquer indicação da autoridade de onde o dogma deriva, por exemplo, qual o sentido de Seleme escrever algo como “Imaginar que o partido repetirá eternamente os mesmos erros do passado é uma forma simples, fácil e errada de se ver o mundo. Os erros amadurecem as pessoas, as instituições, os partidos políticos. Não é possível olhar para o PT e ver só corrupção. O petismo não é sinônimo de roubo, como o malufismo. “ (*)
Na verdade, o petismo não pode ser tomado como sinônimo de roubo no mesmo nível do que foi o “malufismo”, já que é algo que o supera em magnitude, princípio e natureza.
Com efeito, supera em magnitude pelo montante do que foi desviado dos cofres públicos.
Supera em princípio pelo fato de que o termo “malufismo”, se é que faz sentido criá-lo, não serviu para nada além da adjetivação pouco louvável da forma como um certo político atuou. Já o termo “petismo” adjetiva não só uma forma de enriquecimento ilícito de indivíduos ligados ao partido, igual ao que vimos no malufismo, mas vai muito além se transmutando numa forma horrenda de corrupção institucionalizada e justificada pela necessidade de um partido se perpetuar no poder, como ficou demonstrado nas tristes ocorrências do mensalão e petrolão. Favorável ao malufismo, contudo, não há nenhuma morte ainda sem explicação, como no caso do prefeito de Santo André.
Supera quanto à natureza por se manifestar como um movimento reverso ao malufismo. Com efeito, se aceitamos ver a natureza do malufismo como a de um movimento para fora que se expressa e se dilui nas ações externas (ilícitas) de um indivíduo, então, seguindo o paralelismo, vemos que a natureza do petismo corresponde a um movimento reverso para dentro que se expressa e se concentra na estrutura de um partido.
Dessa forma, as ações do petismo, diferente do malufismo, têm o potencial de se perpetuarem no tempo persistindo na mentalidade de um partido que parece ter agregado a corrupção ao seu DNA, constituindo assim um mecanismo perverso que se auto-alimenta legitimado pela adoção da "moral" comunista em que não há erro algum em ações que visam a avançar o partido.
Feito esta breve incursão quanto à natureza, o petismo revela uma estrutura inexistente no malufismo que é a sua essência partidária e, assim, chegamos ao ponto crucial do texto do seu Seleme que é o de persuadir o leitor a perdoar o PT, como se fosse possível separá-lo dos indivíduos que lhe dão identidade. Sinceramente, acredito que o próprio colunista não tenha percebido tal impossibilidade, pois, do jeito que escreveu, ele permite a exposição de um dos maiores vícios desse partido.
De fato, seu Seleme comete um erro grosseiro de avaliação ao não perceber que o PT sem Lula torna-se qualquer coisa, exceto o PT. Assim, enquanto Lula tomar o partido como refém, ele repetirá "ad nauseam" sua crença obsessiva de que é inocente, sem reconhecer a corrupção em que ele e seu partido afundaram o Brasil.
Ora, mas se Lula é a personificação do partido e acredita na sua inocência, então para o partido nenhuma de suas ações foi errada e, seguindo esse critério, nenhum membro tampouco reconhecerá seus erros.
Como pode então alguém acreditar que o PT não repetirá os erros do passado? A fundamentação desse otimismo não é outra senão o de ser um dogma endossado pela discutível "autoridade" moral de um indivíduo como Lula. Mas, se o reconhecimento dessa autoridade é feito exatamente por um terço dos eleitores do Brasil estamos então em um ciclo vicioso que nos põe de volta ao início da argumentação do texto sem sentido e de caráter circular escrito pelo seu Seleme, onde os rejeitados que ele diagnostica são exatamente a parcela que afirma a mesma coisa que ele escreveu em (*) e que, portanto, não precisam ser convencidos de mais nada. Para o bem do Brasil, dada a imutabilidade do PT, ainda é salutar que não passe de uma minoria de um terço os que conscientemente estão dispostos a perdoar o vício achando que ele possa ser tomado como virtude.
Finalizo com uma reflexão sobre alguns pontos, quando seu Seleme escreve sobre a necessidade do país "se reencontrar logo para construir uma alternativa ao bolsonarismo, este sim um problema grave que deve ser enfrentado por todos". (**)
O primeiro ponto é que o "todos" a que o seu Seleme se refere é na verdade apenas um terço. O outro, mais relevante, é que ele de fato dimensiona a força real do bolsonarismo como sendo um "problema" a ser enfrentado por "todos", digo, por este um terço.
Na verdade, a raiz do "problema" deste um terço está no conservadorismo, e a maior virtude do governo Bolsonaro foi de ter permitido que muitos brasileiros tomassem ciência de algo que sempre foram, mas nunca foram treinados para identificar em si mesmos (eu me incluo na lista).
Esta tomada de consciência de ser conservador não é um processo que ocorre naturalmente, mas precisa ser fomentado, algo que a mídia independente tem feito ativamente através das análises e cursos oferecidos por inúmeros canais. Não é de se estranhar que ela esteja sendo caçada pela grande e parcial mídia que municia com fake news inquéritos kafkianos na suprema corte.
O fato é que quando Bolsonaro nomeia como ministros pessoas como Weintraub, Ernesto, Sales, Damares, e coloca outros conservadores em secretarias ele permite que o cidadão brasileiro comum, o povão, que é conservador por natureza, se sinta representado por eles, já que um mesmo princípio e valor comum os unem.
E, falando de valores, há aqui um ponto que a esquerda não é capaz de compreender no conservadorismo, exatamente por ela agregar tudo aquilo que se mostra como um anti-valor ao apostar na aniquilação da religião e da tradição, na negação daquilo que é naturalmente belo e do valor do esforço, apostando até mesmo na subversão da razão e da lógica minando assim o próprio pensamento e a inteligência. Diante dessa falência intelectual da esquerda é que vemos um novo espaço sendo ocupado pelo conservadorismo. Como muitos dizem, a alta cultura e o conservadorismo caminham juntos, e o povo começa a perceber e a procurar avidamente isso.
É exatamente a negação destes valores que impossibilita um cidadão de bem perdoar o PT. Fazê-lo equivale a transformar a virtude do perdão em vício. Assim, se o conservadorismo afirma uma autenticidade de valores é evidente que jamais deve existir unidade com uma esquerda desvalorada.
Assim, seu Seleme tem toda a razão em identificar que o atual governo trouxe um sério problema, mas erra no alvo ao não identificar corretamente que o problema não é tanto o governo, mas o que ele representa, que são os valores do conservadorismo.
Dito de outra forma, o governo atual foi apenas o fator de ignição de uma força que estava latente e que agora se manifesta e se faz sentir de forma irresistível e que continuará existindo, independentemente de governos, num movimento irreversível.
Aos conservadores não importa se são um terço, ou se eventualmente podem ser dois terços, isso não faz a menor diferença. O que conta é afirmar valores percebendo que há momentos em que a divisão não é apenas algo fundamental mas bem-vinda, pois advém da necessidade de afirmar o que somos, nos diferenciando daquilo que mais repudiamos e contra o qual nos insurgimos - a esquerda.
Marcelo Carvalho. Professor UFSC.
Jornal da Cidade