sexta-feira, 17 de abril de 2020

"A censura está de volta?", por Selma Santa Cruz

A notícia de que a “CPMI das Fake News” acaba de ser prorrogada me trouxe à mente uma cena aparentemente desconexa, mas que faz sentido. A imagem dos censores da ditadura militar que marcavam ponto diariamente nas redações de jornais para praticar um ofício infame: decidir quais, entre os fatos apurados ao longo do dia, poderiam ou não ser informados à população. É que a iniciativa do Legislativo, louvável à primeira vista, embute na verdade ameaças à liberdade de expressão, como parte de um movimento mais amplo para implantar um novo tipo de censura. Embora, paradoxalmente, em nome da preservação da democracia. E com um figurino mais apropriado à era das mídias sociais do que o dos capangas do regime militar.
Essa investida começou, como se sabe, após as eleições de 2018, com a CPMI propondo-se a investigar a suposta influência de robôs na vitória de um candidato quase desconhecido, que pegara de surpresa o mundo político, a mídia e os institutos de pesquisa. Depois de um deprimente espetáculo de politicagem explícita, no entanto, com bate-bocas sobre “milícias digitais” e outros temas constrangedores, a CPMI terminou por esgotar seu prazo sem apresentar sequer relatório. Agora, promete ampliar o foco para incluir os perfis que ousem divulgar informações ou opiniões sobre a pandemia de covid-19 em desacordo com a narrativa dominante. Aqueles que seu presidente, o senador baiano Ângelo Coronel (PSD), acusa de serem “verdadeiros marginais das redes sociais”, que “estão atentando contra a vida das pessoas”.
A ameaça passou quase despercebida porque está em linha com um movimento mais amplo de políticos, ONGs, acadêmicos e até jornalistas para impor controles à livre circulação de ideias na internet. Oficialmente, fala-se em monitoramento das redes para combater as fake news, o demônio da vez. E em tornar obrigatória a contratação de “moderadores” ou empresas checadoras de fatos para plataformas como Facebook, Twitter e YouTube — um novo segmento de mercado cujo negócio é aferir a veracidade de informações divulgadas não apenas por robôs, mas por quaisquer cidadãos. E que já está, aliás, em plena expansão, como comprova o grande número de posts ou perfis excluídos diariamente das redes, sem que os penalizados consigam muitas vezes discernir o que provocou a censura — em alguns casos  tem sido necessário recorrer aos tribunais para reaver o direito constitucional à liberdade de expressão.

O incômodo dos “donos do poder”

Tudo isso pode ser interpretado como uma reação previsível à revolução democratizante da internet. Habituados a falar para as “massas” e “audiências” sem ter de ouvir ninguém de volta, os “donos do poder” de quaisquer áreas incomodam-se ao se descobrir, agora, como apenas mais uma voz na vasta arena ampliada da comunicação. Porém, como suas propostas de controle levantam várias questões substanciais ainda sem resposta, elas requerem, com certeza, um debate mais qualificado e plural antes de virar lei.
Ou que não atuarão com viés político-partidário a favor de um ou outro ponto de vista? E quem, por sinal, checará as checadoras? Precisaremos bancar mais uma burocracia reguladora para isso?
Cabe questionar, acima de tudo, quais serão os critérios para definir, com segurança, o que é ou não fake news, em meio às realidades complexas destes tempos de “pós-verdade”, nem sempre redutíveis a simplificações binárias. Afinal, entre uma informação comprovadamente verdadeira ou comprovadamente falsa, há um amplo leque de gradações, como explicitado nas categorias divulgadas por uma dessas empresas checadoras: afirmações exageradas que põem em xeque a informação, contradições que ameaçam sua credibilidade, falta de dados ou fontes capazes de comprovar a informação e assim por diante…
Vale ainda considerar que, apesar de todo o clamor contra as fake news, e o risco inédito que representariam à democracia pelo alcance viral da internet, elas sempre existiram. Falsidades, calúnias e boatos, como se sabe, são tão velhos quanto a humanidade. E desde a invenção de Gutenberg vêm sendo usados por certo tipo de imprensa como munição em embates políticos. O célebre jornalista e empresário Assis Chateaubriand foi um dos mestres brasileiros dessa prática.

A imprensa e suas fake news

A história, aliás, está permeada de tais exemplos. Para lembrar apenas alguns clássicos, Maria Antonieta talvez não tivesse perdido a cabeça sem as escabrosas fake news que a acusaram de incesto, com o próprio filho, herdeiro do trono. E a Europa pagou caro, no século XIX, pela fraude do Despacho de Ems, um relatório diplomático comprovadamente adulterado pelo chanceler prussiano Otto Bismarck para envenenar as relações franco-germânicas — fake news que a imprensa francesa amplificou, levando à deflagração da Guerra Franco-Prussiana de 1870.
Já entre nós, destaca-se o Plano Cohen, complô inventado na década de 1930 por integralistas e disseminado por jornais da época para justificar a implantação do Estado Novo. Sem contar as fake news que ajudaram a atiçar a Revolta da Vacina no começo do século XX, no Rio de Janeiro. Os boateiros alegavam, entre outras coisas, que vacinas provocavam impotência e os agentes sanitários entrariam nas residências para abusar das mulheres.
Outra questão preocupante sobre a atuação das agências checadoras tem a ver com seu papel quando contratadas por veículos de comunicação. Afinal, não faz parte do trabalho dos próprios jornalistas assegurar a veracidade das informações que divulgam? Ao terceirizar função tão intrínseca ao seu mister, eles não estariam, justamente, corroborando as acusações de falta de isenção e confiabilidade da mídia?
Alguns jornalistas, como Leonardo Coutinho, do staff do Center for a Secure Free Society, em Washington, nos Estados Unidos, alertam ainda para a possibilidade de a prática restringir a liberdade de imprensa. Principalmente caso impeça ou dificulte a divulgação de “furos de reportagem” de interesse público, nos casos em que o jornalista investigativo tem de se basear, inicialmente, apenas em indícios e na credibilidade de suas fontes.
É por essas razões que, antes de instaurar novos modelos de censura, atribuindo poder de decisão sobre o que poderemos ou não acessar nas redes a indivíduos que não têm de prestar contas de seus atos, seria provavelmente mais recomendável investir em educação. Em vez de subestimar a inteligência das pessoas, caberia prepará-las para fazerem elas próprias essa aferição, usando as ferramentas digitais e a infinitude de fontes confiáveis à disposição. Seria, com certeza, uma abordagem mais respeitosa em relação a um dos pilares da democracia, que dispensa a tutela do Estado ou de terceiros, confiando na capacidade de cada um de distinguir o que é melhor para si.
Quanto à “CPMI das Fake News”, se ela se propuser, de fato, a investigar todo tipo de informação falsa ou distorcida, indo além das propagadas por robôs e cidadãos anônimos para incluir também as disseminadas no horário nobre da TV, nas páginas de jornais ou nas tribunas dos parlamentos, talvez os seis meses de prorrogação não sejam suficientes. É melhor pensar em algumas décadas…
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Selma Santa Cruz foi editora e correspondente internacional de O Estado de S. Paulo e de Veja, antes de se dedicar à comunicação corporativa como sócia-diretora do Grupo TV1. Da experiência internacional trouxe um interesse redobrado em história e leitura, ocupação nas horas de lazer. Na TV1, liderou projetos em diferentes disciplinas e apoiou a implantação das agências de marketing digital, live marketing, conteúdo e relações públicas.


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