Quando o entrevistador falou da esquerda Rouanet, Evandro perguntou: “em que time joga esse senhor?” Foto: Ninil/Acervo pessoal
Quando este entrevistador se referiu à “esquerda Rouanet” e aos efeitos na cultura pátria da lei que leva o nome de seu autor, o ficcionista Evandro Affonso Ferreira, protagonista da série Nêumanne Entrevista desta semana neste blog, não se fez de rogado e respondeu da forma como está acostumado a escrever. Antecipe aqui a leitura da resposta na reprodução ipsis litteris logo abaixo: “Rouanet… Em que esquina, rua, em que time joga esse senhor? Não conheço. Minha empreitada é escrever…. Escrevo possivelmente para driblar a inquietude; para, quem sabe, não deixar a esperança se desvanecer de vez. Hipóteses. Sei que juntos, palavras e eu, frustramos o inacessível, o acaso; decodificamos o insondável, desbastamos limites linguísticos. Sei que ela, a palavra, é meu tapete mágico sobre o qual atravesso abismo do indizível.”
Evandro Affonso Ferreira é autor de vários romances, entre eles, Minha Mãe se Matou sem Dizer Adeus (Record), Prêmio APCA de Melhor Romance do Ano; O Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam (Record), Prêmio Jabuti de Melhor Romance do Ano; Não Tive Nenhum Prazer em Conhecê-los (Record), Prêmio Bravo de Melhor Romance do Ano; e Nunca Houve Tanto Fim como Agora (Record), Prêmio APCA de Melhor Romance do Ano. Foi dono dos sebos Sagarana e Avalovara, em São Paulo, e como gerente da livraria Boa Vista recebia aos sábados visitas de Mário Chamie, Zé Rodrix, Aquiles do MPB4, Humberto Mariotti e outros intelectuais que davam tudo por um dedo da prosa doce e amarga dele.
Evandro, no ano 2000, quando lançou seu único livro de contos, Grogotó!, que virou sua marca registrada. Foto: J. J. Leister/AE
Nêumanne entrevista Evandro Affonso Ferreira
Nêumanne – Se não fossem os prêmios literários que o senhor tem seguidamente recebido, seria possível cumprir sua determinação de viver de seu ofício de ficcionista limitando-se a receber direitos autorais?
Evandro – Ah… escrevi 13, 14 livros num período de 25 anos… Ganhei ao todo vinte e poucos mil reais, somando direitos autorais e prêmios… Esse pessoal aí que entende de economia poderia fazer a conta direitinho… Posso antecipar o resultado desse balancete literário lançando mão de um verso do nosso saudoso poeta-tradutor José Paulo Paes, dizendo: Para quem sempre pediu tão pouco, o nada é positivamente um exagero.
N – Por falar em direitos autorais, o que o senhor acha desse movimento financiado por grandes produtoras mundiais de conteúdo e acolhido por uma certa ala da esquerda Rouanet, de que o consumidor de cultura é que é o verdadeiro dono do objeto estético, sendo, então, o usufruto do autor, segundo esse pensamento vigente em certas camadas da intelligentsia, uma herança burguesa da Revolução Francesa?
E – Rouanet… Em que esquina, rua, em que time joga esse senhor? Não conheço. Minha empreitada é escrever…. Escrevo possivelmente para driblar a inquietude; para, quem sabe, não deixar a esperança se desvanecer de vez. Hipóteses. Sei que juntos, palavras e eu, frustramos o inacessível, o acaso; decodificamos o insondável, desbastamos limites linguísticos. Sei que ela, a palavra, é meu tapete mágico sobre o qual atravesso abismo do indizível.
Evandro, pra variar, numa livraria, em 2000: “Não escrevo pensando em siglas educacionais”. Foto: Marcelo Ximenes/AE
N- Quando frequentávamos a Livraria Cultura, no tempo em que os livros falavam, sua colega Lygia Fagundes Telles costumava dizer que morria de inveja dos cantores e compositores, que, ao contrário dos escritores, cobram ingressos caríssimos por seusshows e ainda faturam com renúncia fiscal da Lei Rouanet. O senhor compartilha essa inveja dela?
E – Não compartilho, não: tudo o que é ruim pra vida é bom pra literatura. Acho que o artista deve caminhar a trouxe-mouxe pelas vielas, pelos becos da vida, sabendo que vai, se tudo der certo, desembocar na contramão do consenso. José Régio, lembra? Sei que não vou por aí… Costumo brincar, dizendo: quando o sucesso flerta comigo, mudo de calçada. A única coisa que me incomoda mesmo é que às vezes não amanheço preparado para a visitação das palavras.
N – O que mais faz falta hoje aos produtores de literatura no Brasil: os empreendedores, como o livreiro José Olympio ou o editor Enio Silveira, ou as repartições burocráticas do gênero Instituto Nacional do Livro?
E – Ah, Ênio Silveira… guardei durante anos seguidos carta dele comentando sobre meu primeiro livro de minicontos, Grogotó!. Ele, Ênio, dizia que o brasileiro é mais sinfônico que camerístico; que meu livro, infelizmente, não teria muita aceitação no mercado. E fazia uma observação muito bonita: que eu sabia, à semelhança de Cesare Pavese, falar da difícil tarefa de viver. Ênio Silveira, José Olympio… Ah, vou citar meu deus, meu escritor preferido, Bruno Schulz: Então, a época genial existiu ou não? É difícil responder. Sim e não. Porque há coisas que não podem acontecer totalmente, até o fim. São grandes e magníficas demais para caber num acontecimento.
N – O que foi feito de intelectuais como nosso querido amigo comum José Paulo Paes, que aprendeu grego moderno só para traduzir Constantinos Caváfis, à época só conhecido pelas traduções em francês ou inglês?
E – José Paulo Paes… Meu padrinho literário. Traduzia em dez idiomas. Biblioteca maravilhosa, gigantesca. Generoso, bem-humorado. Uma vez uma jornalista foi entrevistá-lo e quis saber motivo o pelo qual ele nomeou um de seus poemas: À Minha Perna Esquerda. Ele, sem perder o humor, deixou a moça num constrangimento daqueles respondendo, sorrindo: “Ah, querida, amputei a perna esquerda, e não a direita”. Outra maravilhosa dele: “A poesia está morta, mas juro que não fui eu”.
“Grogotó!: Experiência única: nunca mais escrevi contos, minicontos, parti para o minirromance; sou escritor mini, se assim posso dizer” Foto: Reprodução
N – O senhor, que cultua a última flor de Lácio com veneração e irreverência, seria capaz de apostar se ela ainda merece a paixão que por ela devotava o húngaro Paulo Rónai, que aprendeu a língua de Camões por meio do alemão e ainda escreveu um tratado delicioso que intitula um de seus livros, Como Aprendi o Português e Outras Aventuras?
E – Paixão pela língua deve existir sempre, sempre. Nós, escritores, temos de lutar a todo instante para que nossas Ariadnes não percam o fio da meada. Eu, por exemplo, não consigo, mas vivo tentando o tempo todo imitar grandes autores – símio da literatura, sou sim.
N – O prazer de terminar um texto como Grogotó! supera ou, no mínimo, compensa a agonia da incerteza sobre se iria conseguir concluí-lo, ou não?
E – Ah o Grogotó!… foi meu primeiro livrinho… Experiência única: nunca mais escrevi contos, minicontos, parti para o minirromance; sou escritor mini, se assim posso dizer.
N – O senhor concorda com seu colega Deonísio da Silva, que disse, em entrevista similar a esta, que os autores dos exames do Enem incluem nas provas autores geniais como Machado de Assis e Guimarães Rosa só para constar, enquanto dedicam mais espaço e atenção a prosadores do segundo time e em outra língua, como Eduardo Galeano?
E – Não sei. Não escrevo pensando nessas siglas educacionais.
Para Evandro, “A única coisa que me incomoda mesmo é que às vezes não amanheço preparado para a visitação das palavras”. Foto: Ninil/Acervo pessoal
N – O que o senhor teria curiosidade de perguntar se se encontrasse, por acaso, com João Antônio, Plínio Marcos, José Agripino de Paula e Lima Barreto, enquanto estivesse esperando Leo Lama na mesa cativa que vocês dividem na Livraria Cultura?
E – Vocês já foram o etecétera da frase de alguém?
N – Aliás, onde o senhor e Leo Lama pretendem se encontrar depois que forem encerradas as atividades da Livraria Cultura, onde nos encontrávamos com Marcos Rey, Mário Chamie, Roberto Piva, Bruno Tolentino, Henrique Matiuci e até mesmo, uma vez ou outra, meio por acaso, com Mário Vargas Llosa, nos sábados pela manhã?
E – Ah, tenho visitado a Livraria da Vila, na Fradique Coutinho, para ver-ouvir minhas amigas Cida e Takai… duas fofuras lindinhas… Amam literatura. Leo Lama já foi intimado para essa mudança estratégico-livresca.
“Há coisas que não podem acontecer até o fim. São grandes e magníficas demais para caber num acontecimento”, diz Evandro. Foto: Ninil (Acervo pessoal)
O Estado de São Paulo