Milagres de expansão de consumo, falsos ou fugazes, podem recuar, voltar atrás, as classes C e D que o provem e comprovem. Mas mesmo ali, nas tão bajuladas novas classes médias, encontram-se as evidências de que a mudança comportamental, cultural, a transformação das mentalidades, estas prescindem de decretos, formalizações e beneplácitos legais para se estabelecer como prática consagrada na vida real.
Tem sido assim durante toda a história do Brasil, os diversos e predadores círculos de governo — colonial, federal, provincial, estadual —, acabam por se curvar às evidências locais, do quarteirão, do bairro, do município, a começar pelo preposto local.
O contraste folclórico dessa tradição é a lei que não “pega”, já o aspecto bem-vindo desse legado é o do costume que “pega” mesmo antes de ter virado lei.
“Sabem por que os positivistas brasileiros tiraram a palavra Amor do lema de August Comte? Porque o amor é da esfera íntima, privada, o Estado não tem o direito de meter ali seu bedelho. ”
Aos movimentos identitários — militantes feministas, negros, LGBT, de empreendedorismo social e tal —, ingenuamente cooptados pela esquerda, não adianta, nem carece de estrilar, ou prejulgar e pressupor que um novo governo central há de revogar suas conquistas libertárias; não há como, não dá. Porque aquilo que foi alcançado de maneira efetiva, prática, real, foi isso, conquista, não foi dádiva ou concessão de nenhum governo oportunisticamente simpático a tais causas. Para além da instrumentalização lograda por forças autoproclamadas progressistas, os costumes mudaram e não foi graças a nenhum governo.
Assim caminha o mundo, o Brasil mais que ninguém: consuetudinariamente.
( Dic. Houaiss: consuetudinário: 3.1 JUR fundado nos costumes, na prática, e não nas leis escritas (diz-se do direito, de lei etc); costumeiro <o direito c. freq. se sobrepõe às leis escritas> ).
Brasília nunca será vanguarda moral de nada
Por mais que se tenham instrumentalizado questões morais nas disputas políticas, aqueles reacionários que se arvoraram a defensores da moral defunta, igualmente aos que se apresentaram como paladinos libertários da nova moralidade, não apitam nesse campo, perderam relevância, ambos perderam.
Oportunistas de esquerda e de direita, esqueçam sua esgrima de passado contra futuro, de bem contra o mal, encontrem-se abatidos nas cordas dessa arena. Brasília nunca será vanguarda moral de nada; irá apenas referendar, em geral atrasada, o que já é costume consumado, verdade de rua.
Políticos: façam política e comprometam a polícia e todas as forças da lei na garantia das liberdades de comportamento da moral renovada, liberdades consagradas consuetudinariamente. Políticos: submetam-se à moral e a sua dinâmica incontível, os tempos já mudaram. Políticos: ponham-se em seu devido lugar; governem, e procurem não atrapalhar a sociedade viva, que pulsa, transforma-se, progride e paga vossos salários; não se metam na vida privada.
Sabem por que os positivistas brasileiros tiraram a palavra Amor do lema de August Comte? Porque o amor é da esfera íntima, privada, o Estado não tem o direito de meter ali seu bedelho. O Estado deve e pode, sim, se comprometer com a manutenção da Ordem e a promoção do Progresso.
O amor é da ordem de outro progresso.
Pedro Bial é jornalista e apresentador de TV
O Globo