Para Roberto Livianu, presidente
do Instituto Não Aceito Corrupção,
demora da Justiça em aplicar Lei
da Ficha Limpa confunde eleitor e
é ruim para democracia
“Lula não estará na cédula eleitoral em 7 de outubro. Isso é tão certo como a luz do sol”, disse o fundador do Instituto Não Aceito Corrupção, o promotor de Justiça Roberto Livianu, em mais esta edição semanal do Nêumanne Entrevista, no Blog do Nêumanne, Política, Estadão. Para ele, “a Lei da Ficha Limpa veda expressamente sua candidatura e é sempre bom lembrar que essa lei nasceu de um projeto de iniciativa popular, tendo sido aprovado no Congresso e sancionado por Lula. Seu partido sabe disso, mas não o declara publicamente para se beneficiar de sua popularidade até o último segundo que a lei permitir”. O promotor reconhece que a demora da resposta final da Justiça, esperada para o fim do mês, “é ruim para a democracia”. E acrescenta: “Precisamos ajustar o sistema para as futuras eleições, para que no mínimo três meses antes de cada uma delas o eleitor possa ter com clareza o quadro de candidaturas admitidas, assim como dos vices. Esse é um imperativo da segurança jurídica, da democracia e da própria essência republicana. Penso, aliás, que a inclusão de Lula nas enquetes contribui para a desinformação e a indução do eleitor, que não tem discernimento para entender o quadro jurídico”.
A seguir Nêumanne entrevista Livianu:
Nêumanne – De 2013 para cá, depois da mobilização do povo brasileiro nas ruas, criou-se um clima de expectativa muito grande de que, enfim, o cidadão iria tomar nas próprias mãos o seu destino e arrancá-lo das garras das elites políticas dirigentes, que só cuidam dos próprios privilégios, pagos a peso de ouro com sangue, suor e lágrimas do cidadão comum. Por que, a seu ver, este mesmo povo se recolheu de volta em casa, a ponto de o militante do Partido Verde e candidato a vice-presidente na chapa de Marina Silva, da Rede Sustentabilidade, Eduardo Jorge, dizer que o brasileiro dorme revoltado e acorda omisso?
Livianu – Em junho de 2013 emitiram-se alguns fugazes sinais de vitalidade da nossa cidadania. Mas não nos iludamos, porque não houve nada parecido com uma Tomada da Bastilha, como na França em julho de 1789. Havia clima de insatisfação generalizada relacionada à aguda crise de representatividade política, amplificada pela frustação com a situação econômica, e isso levou as pessoas às ruas, mas o povo brasileiro não tem perfil histórico de lutar convicto por causas, por ideais. Indignamo-nos episodicamente, circunstancialmente. Exemplo foi o impeachment de Dilma. Ao lado disso temos o fenômeno da militância na rede social, que faz com que muitos pensem que cumpriram sua missão, que exerceram sua cidadania pelos cliques e compartilhamentos permitidos pela internet. O grande problema é que, se indagarmos às pessoas se são contra a corrupção, dirão unanimemente que sim. Se perguntarmos a elas acerca de sua percepção sobre os políticos, é péssima, tanto que a Latinobarómetro 2017 detectou que, para 97% dos brasileiros, os políticos exercem o poder em autobenefício. Mas se lhes for oferecida alguma vantagem, muitas dessas mesmas pessoas aceitarão, o que significa que, na verdade, não aceitam a corrupção dos outros, mas não hesitam em aceitar oportunidades para obter vantagens, pouco importando se são indevidas e se todos terão de pagar essa conta.
N – Desde 2014, com o início da Operação Lava Jato, os sucessos obtidos por uma geração de jovens policiais, procuradores e magistrados federais, da qual o senhor faz parte, animaram o cidadão comum a acreditar no fim próximo da impunidade generalizada, depois que o Brasil deixou de ser o país em que só se prendem pobres, pretos e prostitutas, e magnatas como Marcelo Odebrecht e próceres políticos como o mais popular presidente da História, Lula da Silva, são processados e apenados como presos comuns. O que, em sua opinião, restará dessas conquistas para o futuro?
L – Para sermos justos, o divisor de águas no Brasil em relação à impunidade é anterior à Lava Jato. Foi o processo do mensalão, que tramitou no STF sob a presidência dos ministros Joaquim Barbosa e Ayres Britto. Ali, pela primeira vez os detentores do poder político foram alcançados pela Justiça. Na Lava Jato, o espectro se amplificou e, além do poder político, conseguiu-se atingir também o andar de cima em relação ao poder econômico. A sociedade sentiu-se animada porque pela primeira vez o princípio da igualdade de todos perante a lei foi tangibilizado. Antes era utópico. Esta nova geração demonstrou coragem e disposição para construir um novo paradigma de justiça, apesar das resistências gigantescas das velhas raposas da política, que se articulam para impedir o êxito da empreitada com iniciativas legislativas com nítido propósito de sabotagem, tentando repetir o roteiro italiano da Mãos Limpas em diversos eloquentes exemplos, como o projeto de nova lei de abuso de autoridade, para especificamente criminalizar juízes e promotores; o destroçamento das 10 Medidas contra a Corrupção; o projeto que propõe proibir delações premiadas de presos e outras propostas; para esvaziar a Lei 12850, que regulou a colaboração premiada; a PEC 89, que propôs criar juizados de instrução presididos por delegados, quebrando o princípio constitucional da separação de poderes; o anteprojeto de novo Código de Processo Penal (CPP), que ressuscita a famigerada PEC 37, voltando a falar em proibir o Ministério Público de investigar crimes; e o mais novo jabuti que se tenta inserir na Lei das Estatais, para permitir nomeações de cupinchas e apadrinhados políticos. E sem nos esquecermos da grande barreira que é o foro privilegiado, usado como indevido escudo. O que restará vai depender do grau de mobilização que tivermos para resistir a esses ataques e do apoio que conseguirmos dar à Lava Jato, para que prossiga sua jornada, submetendo todos ao império da lei.
N – No começo deste ano, a tomada de consciência de que a cúpula das organizações partidárias da democracia civil tinha se contaminado toda, sem exceção alguma, levou o cidadão consciente a imaginar que assumiria o comando da Nação elegendo um presidente da República capaz de assumir, estimular e promover a faxina necessária. Diante do que veio à tona até agora, essa esperança já virou uma ilusão? Para quando foi adiado o sonho do verão passado?
L – Não podemos perder as referências históricas. No início do século 19 não tínhamos sequer uma escola no Brasil e apenas 2% da população era alfabetizada. A República foi proclamada há 129 anos, mas durante décadas só votavam os homens ricos. Tínhamos uma aristocracia. As mulheres conquistaram o direito ao voto na década de 1940. Aliás, há mais de uma década muitos partidos eliminaram a denominação partido de seus nomes e isso não é obra do acaso. Vejam-se os exemplos do DEM, PROS, Solidariedade, Podemos, Rede Sustentabilidade, Novo e o próprio MDB. Lamentavelmente, os partidos políticos no Brasil, de um modo geral, não se têm submetido ao império da lei. Concedem legenda a fichas-imundas contra a Lei da Ficha Limpa e não explicitam com transparência os critérios que serão utilizados para a distribuição dos recursos do fundão eleitoral (dinheiro público), sendo geridos de forma coronelista, sem qualquer accountability ou compliance. Como se fossem entes acima das leis. Aliás, a pesquisa Lapop, da Vanderbilt University, de 2017, apontou que os partidos políticos no Brasil atingiram o ponto mais crítico em matéria de credibilidade como instituições, comparando-se todas as edições da pesquisa. Em função disso, tem ganho força de forma legítima o debate sobre candidaturas independentes, que tem respaldo legal no Pacto de San José, que não exige filiação partidária para o exercício de direitos políticos. O STF adiou para as eleições de 2020 essa decisão. O problema é que neste ambiente de partidos apodrecidos e sem nenhuma credibilidade ou principiologia, em geral, salvo honrosas e poucas exceções, é dificílimo florescer uma candidatura saudável e viável para gerir o País. Para ter tempo no horário eleitoral de TV é necessário fazer pactos diabólicos, pois sem alianças nem tempo no horário de TV é dificílimo, para não dizer impossível, vencer as eleições.
N – Neste inverno de nossa desesperança, a campanha eleitoral para substituir presidente da República, governadores estaduais, deputados federais e estaduais e dois terços dos senadores não é o cenário no qual podemos esperar que apareçam líderes fortes capazes de pôr fim ao desastre das contas públicas e ao descalabro da gestão da máquina do Estado, que consome cada vez mais recursos da população e entrega cada vez menos serviços dignos desse nome. O que o senhor espera que resulte desse óbvio desarranjo?
L – Elegeremos em 7 de outubro o presidente da República. Mas, além dele, 27 governadores dos Estados, 54 senadores da República, 513 deputados federais e 1.059 deputados estaduais. O povo costuma atribuir mais importância às escolhas do Poder Executivo – presidente e governadores. Talvez porque o Executivo administra e isso faça com que essas escolhas despertem mais interesse, afinal, são o presidente e o governador que realizarão as obras – escolas, hospitais, estradas, etc. Mas é necessário que se tenha muita consciência em relação às escolhas para o Legislativo. Os temas cruciais são discutidos lá. E foi lá, por exemplo, que se decidiu o impeachment de Collor e o de Dilma, assim como o não prosseguimento das duas denúncias criminais por corrupção contra Temer. Lamentavelmente, no debate sobre a reforma política tivemos poucos avanços e a expectativa justa de pôr nas mãos do povo a decisão sobre a renovação ou não foi frustrada. As velhas raposas resistiram às mudanças, especialmente à ideia do voto distrital, que baratearia e diminuiria o risco de corrupção eleitoral, para que se mantivesse o atual sistema e para que fosse facilitada ao máximo a reeleição dos atuais mandatários, numa busca desenfreada pela própria negação da essência da República, que é a alternância no poder. Quem está no poder luta pela eternização. Não se assistiu a um debate, por exemplo, sobre o tema do limite para o número de mandatos consecutivos no Legislativo no Brasil. Há parlamentares que estão no sexto, oitavo, décimo mandato consecutivo. Mas vimos, sim, o relator da reforma política propor que se aceitassem doações anônimas para campanhas eleitorais, legitimando aportes provenientes do PCC, Comando Vermelho ou até mesmo da máfia russa ou chinesa. Vimos também ser proposta emenda para proibir prisões de políticos oito meses antes das eleições, apelidada carinhosamente de emenda Lula. Mesmo diante do fracasso da reforma política, diversos movimentos, preocupados com a renovação política, surgiram e se fortalecem, como a Raps, RenovaBr, Agora e uma infinidade de outros, dedicando-se a forjar candidaturas comprometidas com o bem comum. Além disso, a sociedade vem participando e acompanhando, ainda que muito no plano das redes sociais, o debate político, o que pode produzir resultados positivos nas urnas, sendo difícil prever a magnitude. No entanto, ainda se compram votos em larga escala no Brasil e a Justiça Eleitoral precisa se reinventar para reprimir essas práticas, assim como o caixa 2 eleitoral, usado também para comprar votos, que desequilibram o jogo e sabotam o sistema democrático.
N – Qual é a sua previsão para a expectativa racional de que um Poder Legislativo dominado pela corrupção e pelo medo da punição seja um verdadeiro paralelepípedo no sapato dos ocupantes do Poder Executivo, por mais bem-intencionados que eles sejam, o que já será difícil?
L – Não tenho a ilusão de que a partir de 2019 teremos 513 próceres. Que teremos a total restauração do sistema de freios e contrapesos no desenho original de Montesquieu. Mas acredito ser possível elegermos em 7 de outubro um expressivo grupo de parlamentares que assumam o poder com o compromisso firme de mudar o paradigma de política em nosso país. Acredito que este novo grupo pode agir proativamente para o restauro da representatividade política, gerando um reposicionamento da atitude parlamentar em geral. Algumas dezenas de parlamentares podem criar a frente da nova política, baseada na transparência, na lealdade com o povo, no profissionalismo, no compromisso com o bem comum, na integridade, na austeridade, em gabinetes mais enxutos e na eficiência. Precisamos construir uma nova cultura parlamentar e essa construção cultural não ocorrerá em um dia, em um ano, em um mandato. É uma construção que precisa ser iniciada e ter prosseguimento. Uma nova cultura institui-se ao longo de novas gerações. Desde que esse seja o pensamento e o desejo prevalente da sociedade. Esse movimento poderá construir novas leis, conquistar respeito no Congresso, mudar cabeças, arrebatar corações e influenciar decisivamente o Poder Executivo.
N – O senhor vê alguma saída para o impasse criado pelo espetáculo dantesco de uma disputa presidencial cujo favorito na simpatia popular, flagrada pelas pesquisas, é um condenado em segunda instância, portanto, inelegível, caso de Lula, que assedia as instâncias judiciárias da forma mais desavergonhada e é tratado por elas, de modo geral, de forma leniente?
L – Lula não estará na cédula eleitoral em 7 de outubro. Isso é tão certo como a luz do sol. A Lei da Ficha Limpa veda expressamente sua candidatura e é sempre bom lembrar que essa lei nasceu de um projeto de iniciativa popular, tendo sido aprovado no Congresso e sancionado por Lula. Seu partido sabe disso, mas não o declara publicamente para se beneficiar de sua popularidade até o último segundo que a lei permitir. Quando vier a palavra final da Justiça, declarando concretamente o que já se sabe abstratamente, até a Velhinha de Taubaté tem ciência de que ele será substituído por Fernando Haddad (seu vice, que, na realidade, é seu substituto para o posto de presidente, pois a vice é Manuela D’Ávila). A “vaquinha virtual” está captando dinheiro que não será utilizado em sua campanha. É um ardil para fazer parecer real e viável sua candidatura. Tentarão dizer ao povo que é a mesma coisa. Como já disse antes, os partidos desprezam a Lei da Ficha Limpa e dão legenda a fichas-sujas. Em 2014 o roteiro foi o mesmo com José Riva, em Mato Grosso; Arruda, no DF; e Neudo, em Roraima. Todos candidatos a governador e hoje presos por corrupção. E todos indicaram a esposa como sucessora. No caso de Lula, além de estar inelegível por ter sido condenado em segunda instância, está preso por determinação do STF, apesar dos esperneios dele e de seus companheiros. E vale lembrar que a maior parte dos ministros do STF que determinaram que permanecesse preso foi nomeada por Lula ou por Dilma. A resposta final da Justiça virá este mês e isso é ruim para a democracia. Precisamos ajustar o sistema para as futuras eleições, para que no mínimo três meses antes de cada uma delas o eleitor possa ter com clareza o quadro de candidaturas admitidas, assim como dos vices. Esse é um imperativo da segurança jurídica, da democracia e da própria essência republicana. Penso, aliás, que a inclusão de Lula nas enquetes contribui para a desinformação e a indução do eleitor, que não tem discernimento para entender o quadro jurídico.
N – E o que dizer do outro candidato importante, do lado oposto do espectro ideológico, a extrema direita, o oficial da reserva do Exército Jair Bolsonaro, que entra na liça ao lado de um candidato a vice, o general Hamilton Mourão, que professa, na maior desfaçatez crenças racistas como as do vício do privilégio dos ibéricos, da malandragem dos afrodescendentes e da indolência dos indígenas, abordadas por ele como se fossem doenças incuráveis de nossa formação genética e aceitas por parte considerável do eleitorado que decidirá o destino do Brasil em outubro nas urnas?
L – Apesar da perplexidade que tais declarações causam, é fundamental que os eleitores prestem atenção e reflitam a esse respeito. Pesquisem muito antes de decidir. Há muitos portais oferecendo informações detalhadas sobre o perfil dos postulantes ao poder. Por exemplo, em relação a esse candidato a presidente, que há décadas é deputado federal, mostra-se fundamental verificar o que realizou de efetivo nessa condição. Quais projetos seus foram aprovados em tantas décadas? Em quais áreas atuou? Suas posições ao longo dos anos são coerentes em relação ao que defende agora? Em recente reunião em Brasília, com prefeitos de todo o País, esse candidato publicamente prometeu solenemente amesquinhar o Ministério Público, caso seja eleito, uma instituição cuja essência é a defesa coletiva da sociedade. Sustentar que os males do Brasil são decorrentes em importante medida do fato de termos tido colonização portuguesa, por termos herdado suposta malandragem africana e hipotética indolência indígena evidencia extrema insensibilidade e falta de conhecimento histórico, desvalorizando-se tantos aspectos positivos culturais que herdamos de nossas origens. A generalização, base fundamental do preconceito, é fator gerador de intolerância e de injustiças em geral. Isso nos desagrega.
N – A que o senhor atribui a diferença abissal entre a primeira instância da Justiça, que tem consciência da necessidade de punir a delinquência, e as Cortes mais altas do Judiciário, que não têm o menor pudor de cuidar apenas de tirar magnatas do convívio no inferno prisional brasileiro, pagando os serviços a peso de ouro de bancas advocatícias de elite? Que consequências essa diferença terá na paz e na ordem social da sociedade onde vivem nossos entes queridos?
L – Não podemos generalizar. Existem decisões importantes e muito bem fundamentadas provenientes dos nossos tribunais superiores. Mas nunca podemos esquecer que a Justiça de primeira instância, em que atuam Sergio Moro, Marcelo Bretas e tantos outros, funciona com magistrados escolhidos de forma meritocrática por concurso público de provas e títulos. Nenhum juiz e nenhum membro do Ministério Público foi escolhido politicamente. No entanto, nas altas Cortes os ministros são nomeados politicamente. E quem os escolhe é o presidente da República, com poderes totais e absolutos, tirando o nome, muitas vezes, do fundo da cartola. Há uma sabatina no Senado, mas jamais houve recusa pelo Congresso de um nome indicado pelo presidente. Esse sistema de escolha para o STF e o STJ precisa ser modificado. Defendo a ideia de ser instituído mandato. Na Alemanha, o período é de dez anos, por exemplo. Além disso, outras instituições deveriam ser ouvidas nas escolhas – o próprio STF (Judiciário), o Ministério Público, a OAB. Poderiam construir uma lista tríplice ou sêxtupla para dali o presidente indicar e o Congresso sabatinar. E as reformas devem incluir o Ministério Público, a meu ver. É inadmissível que não se tenha eleição formal para a escolha do procurador-geral da República e o presidente escolha seu próprio fiscal a partir de uma votação informal feita pela associação de classe dos procuradores da República. Também em nível estadual deveria ser diferente. Há eleições com lista tríplice, mas o governador nomeia quem ele quiser. Seria melhor um sistema com votação uninominal interno e depois submeter o nome mais votado à Assembleia Legislativa, que o ratificaria ou não (com o voto de dois terços), o que daria transparência às propostas do procurador-geral de Justiça e desconcentraria o poder de escolha. Imagine-se que há ainda quatro Estados do Brasil que mantêm reserva de poder para procuradores de Justiça – só eles podem ser procuradores-gerais de Justiça, o que é totalmente anacrônico e antidemocrático –, São Paulo, Roraima, Tocantins e Minas Gerais. Em São Paulo e no Tocantins as Assembleias estão discutindo o tema.
N – Qual o futuro de institutos que têm ajudado a combater a delinquência, particularmente a de colarinho-branco, mas não apenas esta, tal como a delação premiada, neste ambiente atual, em que todos os grupos políticos relevantes no cenário da gestão do Estado brasileiro estão juntos, de mãos dadas, lutando pela impunidade ampla e geral, mas restrita?
L – Como mencionei, a colaboração premiada é regulada pela Lei 12.850. Esta lei foi sancionada por Dilma, logo após as jornadas de junho de 2013, como uma espécie de satisfação ao povo. Penso que o universo político não tinha a dimensão do que eclodiria a partir de 2014 na Operação Lava Jato. Esse instituto é utilizado há décadas em todo o mundo como instrumento fundamental para o combate à corrupção. Como dito, há iniciativas que visam a desestruturá-lo, restringi-lo, bloqueá-lo. Mas penso que a mobilização da sociedade pode e vai impedir o sucesso dessas tramas que são urdidas entre os pares que querem ver o Brasil impune e legislam em causa própria. A ideia do relator da reforma política, por exemplo, de admitir doações anônimas em campanhas teve reação da sociedade – o Movimento Transparência Partidária, o Instituto Não Aceito Corrupção e outros tornaram pública sua indignação, que ecoou. O mesmo aconteceu em relação à tentativa de anistiar ilícitos cometidos com recursos provenientes do caixa 2 eleitoral. E até o indulto “black friday” natalino, que o presidente havia concedido e liquidaria 80% das penas de corruptos. A reação contribuiu para que houvesse reação e o STF suspendeu os efeitos do decreto. Agora temos as novas medidas contra a corrupção (www.unidoscontraacorrupcao.org.br), fruto de um trabalho profundo, capitaneado pela Transparência Internacional e pela FGV, que já receberam mais de 250 mil assinaturas de apoio e merecem grande atenção, tendo sido construídas coletivamente, ouvindo centenas de especialistas e entidades.
N – Como representante do Ministério Público, o que o senhor acha da profissão de fé feita pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli de que a função do Judiciário é defender as minorias e a própria maioria da truculência desta? No caso específico da atuação daquele que assumirá a presidência da Corte em 13 de setembro, o que isso significaria na prática?
L – A função do Judiciário é aplicar a lei e os princípios doutrinários, avaliando os precedentes (jurisprudência), ao caso concreto que lhe é apresentado. O juiz não é eleito e, por isso, não exerce função de representação política. Deve estar sintonizado com os anseios da sociedade, mas não deve decidir para agradar à sociedade, e sim para ser justo e correto. O exercício interpretativo, que cabe ao juiz, deve ser realizado com absoluta independência, não podendo ser coarctado (como se tentou com o projeto de lei de abuso de autoridade, criminalizando a hermenêutica), e isso é uma garantia da própria sociedade. As minorias devem ser respeitadas, assim como o direito daqueles que integram a maioria. Ninguém se pode colocar acima da lei nem pode haver espaço para abusos de direito, pois nos termos da própria Constituição federal, que completa 30 anos em 5 de outubro, nenhuma lesão a direitos pode ser excluída do exame da Justiça. Assim, quem quer que seja o truculento, de qualquer grupo, se violar direitos, deve ser responsabilizado na forma da lei. Tenho expectativa que o ministro Toffoli conduza de forma sábia, serena e equilibrada o STF, neste momento tão agudo de nossa História republicana, especialmente porque, antes de mais nada, precisamos fazer a travessia das eleições de 7 de outubro.