Angela Merkel foi obrigada a endurecer a política de imigração para salvar a coalizão que sustenta seu governo. A chanceler alemã está na centro-direita liberal, com o partido União Democrata-Cristã. Sua liderança foi essencial para desenvolver em toda a União Europeia um ambiente multilateral, democrático e livre, de fronteiras abertas. Não por acaso, a Alemanha é o país europeu que mais recebe imigrantes. Recebia.
Merkel está perdendo espaço para o partido mais à direita de sua coalizão, a União Social Cristã, dominante na estratégica Baviera, que exige praticamente o fim da imigração e ameaça deixar o governo. Como isso levaria à sua derrocada, Merkel topou um acordo. Imigrantes que tentarem chegar à Alemanha, depois de terem entrada na Europa por outro país, serão detidos e deportados.
Isso se aplica sobretudo à fronteira com a Áustria, cujo governo é uma coalizão bem mais à direita. E que reagiu. Se a Alemanha mandar de volta os imigrantes que chegarem pela Áustria, o governo austríaco diz que fará exatamente o mesmo, ou seja, os mandará de volta para Itália e Eslovênia, de onde chega a maioria. E estabelecerá controles rígidos em todas as fronteiras, inclusive para os europeus.
O governo da Itália, um porto de acesso de pessoas que fogem especialmente da África, informou que não pode aceitar nem um imigrante a mais e que pretende, ao contrário, reduzir o número dos que já estão lá.
Essa atitude é uma onda que se espalha pela Europa, um avanço das direitas não liberais.
É um contraste total com o que se vê nos jogos da Copa do Mundo. A Copa é uma síntese da globalização em todos os sentidos, e mais especialmente quando se trata da União Europeia. Os times em campo refletem o multilateralismo, da livre circulação de pessoas, jogadores no caso, ao livre mercado dos clubes (empresas) e, sobretudo, ao livre trânsito e à comunhão de ideias.
Todos os times da União Europeia incluem descendentes de africanos. Até a cada vez mais fascista Áustria (que não foi para a Copa) tem negro no seu time.
Isso resulta de uma política de imigração liberal.
Há mais. Considerem um dos artilheiros, Romelu Lukaku. Seus pais são congoleses, ele nasceu em Antuérpia, joga, pois, pela seleção belga, mas exerce sua profissão na Inglaterra, titular do Manchester United.
Temos aí a imigração e a livre circulação de profissionais dentro da União Europeia. Os casos se repetem. Conhecem Samuel Umtiti? Nasceu em Camarões, foi para a França, lá ganhou a cidadania, joga pela seleção francesa, e sua carteira de trabalho é assinada pelo Barcelona da Espanha.
Os clubes da União Europeia são a origem da maior parte dos jogadores da Copa. Só o campeonato inglês, a Premier League, ofereceu 107 jogadores para os times que estão na Rússia.
No começo dessa globalização, havia resistência no mundo do futebol. Era um nacionalismo rasteiro como em outras áreas da sociedade. Dizia-se que os estrangeiros tomariam a vaga de jogadores locais, com isso prejudicando o desenvolvimento do futebol nacional. Mais ou menos como dizer que a indústria nacional só sobrevive se for protegida da competição externa.
É o contrário, como o provam as seleções dos países que mais abriram o seu futebol — como a Espanha. Os craques estrangeiros trazem qualidade e evolução aos locais.
Assim como os técnicos, protagonistas da livre circulação de ideias — táticas de jogo, no caso, claro. Repararam como os times jogam muito parecido? O toque de bola, as defesas bem organizadas, o agrupamento dos jogadores, a marcação na frente — são ideias espalhadas pelos técnicos internacionais, mais ou menos como engenheiros e cientistas que espalham conhecimento pelo mundo.
E, finalmente, no capítulo do livre mercado, tem a circulação de capitais que financiam e fortalecem os clubes e os campeonatos. Mais dinheiro, mais craques, mais espetáculo, que rende mais dinheiro e assim vai. Capital e agregação de valor.
Não é por acaso que o mundo inteiro se rende ao beautiful game, como o futebol é conhecido globalmente. Ali se encontra o que há de melhor no mundo: integração, liberdade, portas abertas, arte e talento.
Toda vez que a pressionarem, Merkel deveria passar uns vídeos da sua seleção, com Boateng, Ozil, Khedira, Sané. Idem para os demais líderes europeus liberais.
Em tempo: Vladimir Putin reclamou uma vez do campeonato russo. “Parece uma liga africana”, disse. Exagero racista. Mesmo porque a presença de estrangeiros ainda não foi suficiente para formar lá um grande futebol, verdadeiramente europeu.
Carlos Alberto Sardenberg é jornalista
O Globo