No discurso que inaugurou o ano de 2018, o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, dirigiu-se assim ao seu maior inimigo: “Não é uma simples ameaça. Eu realmente tenho um botão nuclear na minha mesa. Todo o território dos Estados Unidos está ao alcance de um ataque nuclear”. No ano anterior, ele testara uma bomba de hidrogênio, cerca de 100 vezes mais poderosa que as que o país já tinha, e fizera testes de mísseis balísticos capazes de alcançar metade do planeta. A Coreia do Sul e o Japão, mais próximos, ficaram alarmados. A possibilidade de Kim iniciar uma hecatombe levou até a China, tradicional aliada, a cortar a remessa de gasolina para esfriar o ímpeto do pequeno tirano. A ameaça do “homenzinho do foguete”, como o presidente americano o chamou, fez o próprio Trump sentar-se à mesa de negociações com Kim na semana passada, um encontro histórico entre inimigos que antes só se insultavam em público.
O encontro consistiu numa vitória maiúscula para o ditador da Coreia do Norte, que conseguiu atrair o líder da maior potência mundial para uma negociação. Deixou, de uma hora para outra, de ser tratado como um pária pela comunidade internacional e alcançou sua glória. Enquanto passeava por Singapura na segunda-feira 11, Kim Jong-un foi ovacionado pela multidão, que pedia sorrisos para as fotos e o chamava de “Mister Kim”. Na mesma noite, tirou selfies com os diplomatas da cidade-estado asiática, onde o encontro foi realizado. No dia seguinte, a terça-feira 12 (por causa do fuso horário, às 22 horas de segunda em Brasília), deu-se o ato final do triunfo: o ditador encontrou-se em um hotel com o presidente Donald Trump.
Em um palco com bandeiras dos dois países, colocadas lado a lado, Trump e Kim se cumprimentaram, sorridentes, à vista dos fotógrafos. “Kim reduziu seu isolamento internacional e alcançou um status sem precedentes para um líder de seu país ao ser tratado como um igual pelo presidente dos Estados Unidos”, diz o historiador James Hershberg, da Universidade George Washington. Os dois se falaram por quatro horas e, no final, divulgaram uma declaração vaga, sem compromissos concretos, na qual Kim apenas se compromete a trabalhar pela completa desnuclearização de seu país. Já é alguma coisa, mas é pouco.
Nos últimos anos, Kim acelerou a produção de bombas nucleares porque sabia que só elas lhe garantiriam fugir ao destino trágico do líbio Muamar Kadafi, que desistiu de obter um arsenal, foi chutado do poder em 2011, com a ajuda da Otan, a aliança militar do Ocidente, e acabou sofrendo uma morte violenta na mão de inimigos políticos. Escondidas na Coreia do Norte, as cerca de sessenta bombas agora podem ajudar Kim a arrancar ainda mais concessões de países muito mais poderosos do que o seu, cujo PIB equivale ao de Botsuana, na África. Na semana passada, por exemplo, a China afirmou que pensa em retirar as sanções econômicas contra a Coreia do Norte.
Como resultado do encontro, Trump prometeu acabar com os exercícios militares conjuntos com a Coreia do Sul, sem que Kim precisasse se comprometer com um cronograma para desmantelar seu arsenal, nem ao menos dizer onde as bombas estão. As duas páginas da declaração assinada por Kim e Trump em Singapura em nada se comparam ao detalhismo das 159 páginas do plano de ação conjunta para interromper o programa nuclear do Irã selado em 2015 pelo antecessor, Barack Obama. Trump, no entanto, recentemente decidiu romper o acordo com o Irã, sob a alegação de que não tinha garantias suficientes, e agora se embrenha numa negociação muito mais imprecisa com a Coreia do Norte.
A decisão de Trump de dar legitimidade a Kim antes de obter concessões é um ponto fora da curva na diplomacia americana. O acerto com o Irã dos aiatolás foi o resultado de negociações que se estenderam por 21 meses. Os itens espinhosos foram lapidados por funcionários do segundo escalão. Somente à assinatura do acordo em Viena, na Áustria, em julho de 2015, é que compareceram os ministros de Relações Exteriores dos países envolvidos, inclusive dos EUA.
Trump pôs a diplomacia de ponta-cabeça. Ele aventou que se encontraria com Kim Jong-un ainda na campanha presidencial de 2016. Depois de tomar posse, as tratativas ficaram a cargo da CIA, a agência americana de inteligência. A entidade era então liderada por Mike Pompeo, que em maio foi empossado secretário de Estado. Apenas agora, após o encontro de Kim e Trump, é que as negociações vão descer aos detalhes — e podem se estender por anos. “Como nada ainda foi suficientemente debatido, a declaração de Singapura só podia ser genérica”, diz o cientista político Ken Gause, diretor da área de relações internacionais da consultoria CNA, em Arlington, nos Estados Unidos. “Trump quis jogar o status quo pela janela, pois, embora o sistema tenha mantido a paz por seis décadas, ele não resolveu o problema.”
Para Kim, os ganhos com o encontro são imediatos, mesmo que nada de concreto resulte dele. Sua maior preocupação é consolidar seu poder, pois assumiu o governo em 2011 com menos de 30 anos sem ter recebido muito preparo para isso. Sua primeira viagem internacional só aconteceu neste ano, para a China. Para ganhar confiança, ele imitou o corte de cabelo do avô Kim Il-sung e engordou 40 quilos — os norte-coreanos, quase todos magros, veem o sobrepeso como algo invejável. Também ordenou a execução de dezenas de militares que caíram em desgraça. Em 2013, mandou matar o próprio tio, Jang Song-thaek, o segundo homem mais poderoso da nação. Em fevereiro do ano passado foi a vez de seu meio-irmão, Kim Jong-nam, envenenado por duas mulheres no aeroporto de Kuala Lumpur, na Malásia. Tanto o tio como o irmão eram ameaças ao ditador e tinham boas relações com a China.
Mas tudo o que Kim Jong-un aprontou em seus primeiros anos não se equipara ao que conseguiu em Singapura. Após seu encontro com Trump, a agência estatal de notícias publicou que a cúpula aconteceu “com sucesso em meio ao apoio entusiasmado” e disse que “as boas-vindas de todo o mundo” reforçaram a inclinação histórica da Coreia do Norte para “a reconciliação e a paz”. Até na Coreia do Sul Kim amealhou fãs. Em março, cerca de 10% dos sul-coreanos simpatizavam com ele. Agora, o índice chegou a 31%.
Soma-se à vitória de Kim o fato de que Trump não tocou no assunto dos direitos humanos, item tradicional da pauta americana. Barack Obama, em visita a Cuba, não se furtou a encontrar dissidentes de Raúl Castro durante duras horas. Em 2016, quando visitou a China, Obama pediu liberdade religiosa, reforçando valores americanos. Trump vitaminou Kim sem sequer obter gestos simbólicos de boa vontade do ditador, além da libertação de três americanos presos na Coreia do Norte.
Com Trump, a política externa dos Estados Unidos trocou o certo pelo incerto. O presidente chegou a Singapura logo depois de deixar uma reunião do G7, o grupo dos países mais ricos do mundo, em Quebec, no Canadá. Trump saiu do evento sem assinar o documento final e chamando o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau de desonesto e fraco. “Há uma visão surrealista de política externa nos EUA segundo a qual temos de ser mais duros com nossos amigos e mais abertos e tranquilos com nossos rivais. Trump está seguindo isso, mas, para resolver um imbróglio como o da Coreia do Norte, será fundamental ter o apoio dos aliados”, diz o cientista político John Schuessler, da Universidade Texas A&M. Sem dúvida, é melhor ter Kim e Trump apertando as mãos do que ameaçando se bombardear, mas esse consolo pode não durar muito tempo.
Duda Teixeira e Thais Navarro, Veja