Um dia para sempre
Em certos instantes da história, tudo o que veio antes parece imediatamente velho. Foi assim na noite de 29 de maio de 1913, no Teatro dos Champs-Élysées, em Paris, quando o russo de origem polaca Nijinsky apresentou pela primeira vez a coreografia de A Sagração da Primavera. Os movimentos do bailarino enfatizavam o peso, e não a leveza, como ditavam as normas do balé clássico. Mal o pano caiu, houve brigas na plateia e alguns cavalheiros chegaram a arremessar bengalas contra o palco. Foi assim em 16 de julho de 1916, na Galeria Barbazanges, também em Paris, no vernissage de uma mostra que desnudou Les Demoiselles d’Avignon, de Pablo Picasso. André Derain, pintor que rivalizava com o espanhol, provocou: “Um dia descobriremos que Pablo se enforcou atrás de sua grande tela”.
Foi assim na noite carioca de 11 de março de 1957, em que o urbanista Lúcio Costa desceu de seu Hillman bege para, quase no horário-limite estabelecido pela comissão julgadora, entregar o projeto do que seria Brasília — um documento de 3 857 palavras que começava com um pedido de desculpas pela “apresentação sumária”, e que Carlos Drummond de Andrade descreveria depois com poesia: “Era um rabisco e pulsava”. Foi assim, para encerrar um rol que poderia se estender por datas e mais datas, mas não muitas, também naquela semana — não se sabe o dia exato — de abril de 1958 em que Elizete Cardoso entrou no estúdio para gravar o LP Canção do Amor Demais, no qual se destacava o samba Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, com a batida de violão aparentemente desafinada de um certo baiano chamado João Gilberto.
E então aconteceu o 15 de junho de 1958, há exatos sessenta anos, no estádio Nya Ullevi, em Gotemburgo, na Suécia. Na partida contra a União Soviética, que dois anos antes ganhara o ouro olímpico, pela primeira vez Garrincha e Pelé entraram em campo com a camisa da seleção brasileira. A dupla faria quarenta jogos pelo Brasil. Com os dois juntos no gramado a canarinho nunca perdeu — 36 vitórias e quatro empates. Era o terceiro jogo do Brasil na Copa. Vencera a Áustria por 3 a 0 e empatara com a Inglaterra em 0 a 0. A URSS do goleiro Lev Yashin era favorita, e nessa condição entrou em campo. Foi derrotada por 2 a 0, e o Brasil avançou a caminho do título. Naquele domingo, houve uma epifania como a de Nijinsky, Picasso, Lúcio Costa e João Gilberto — mas os artistas eram um mulato de pernas tortas e um negro mirrado.
O mundo redescobriu o futebol, que já vinha vivendo pequenas revoluções, com uma sucessão de novos modos de posicionar os jogadores em campo. O resultado em si, o 2 a 0 contra os soviéticos, foi celebrado — “Caiu o queixo da imprensa mundial: magnífico!”, exclamou um jornal carioca —, mas o que realmente teve o dom de iluminar um novo caminho foram os três minutos iniciais do embate. Para o jornalista francês Gabriel Hanot, do diário L’Équipe, “os três maiores minutos da história do futebol”.
Daqueles três minutos restam apenas alguns segundos que podem ser vistos no YouTube. Um texto do repórter Ney Bianchi, da Manchete Esportiva, recuperado por Ruy Castro na biografia de Garrincha, nos põe dentro do gramado. Parece longo, mas, editado com acelerações e freadas à Garrincha, soa como a narração rápida e emocionada de um locutor de rádio — o aparelho pelo qual o Brasil acompanhou a Copa da Suécia. É um texto de tirar o fôlego, que merece ser revivido:
“Monsieur Guigue, gendarme nas horas vagas, ordena o começo da partida. Didi centra rápido para a direita: 15 segundos de jogo. Garrincha escora a bola com o peito do pé: 20 segundos. Kuznetzov parte sobre ele. Garrincha faz que vai para a esquerda, não vai, sai pela direita. Kuznetzov cai e fica sendo o primeiro João da Copa do Mundo: 25 segundos. Garrincha dá outro drible em Kuznetzov: 27 segundos. Mais outro: 30 segundos. Outro. Todo o estádio se levanta. Kuznetzov está sentado, espantado: 32 segundos. Garrincha parte para a linha de fundo. Kuznetzov arremete outra vez, agora ajudado por Voinov e Krijveski: 34 segundos. Garrincha faz assim com a perna. Puxa a bola para cá, para lá e sai de novo pela direita. Os três russos estão esparramados na grama, Voinov com o assento empinado para o céu. O estádio estoura de riso: 38 segundos. Garrincha chuta violentamente, cruzado, sem ângulo. A bola explode no poste esquerdo da baliza de Yashin e sai pela linha de fundo: 40 segundos. A plateia delira. Garrincha volta para o meio de campo, sempre desengonçado. Agora é aplaudido. A torcida fica de pé outra vez. Garrincha avança com a bola. João Kuznetzov cai novamente. Didi pede a bola: 45 segundos. Chuta de curva, com a parte de dentro do pé. A bola faz a volta ao lado de Igor Netto e cai nos pés de Pelé. Pelé dá a Vavá: 48 segundos. Vavá a Didi, a Garrincha, outra vez a Pelé, Pelé chuta, a bola bate no travessão e sobe: 55 segundos. O ritmo do time é alucinante. É a cadência de Garrincha. Yashin tem a camisa empapada de suor, como se já jogasse há várias horas. A avalanche continua. Segundo após segundo, Garrincha dizima os russos. A histeria domina o estádio. E a explosão vem com o gol de Vavá, exatamente aos três minutos”.
Foi espantoso. Escreveu Nelson Rodrigues numa crônica: “A coisa virou show de Grande Otelo. E tem razão um amigo que, ouvindo o rádio, ao meu lado, sopra-me: isso que o Garrincha está fazendo é pior que xingar a mãe!. Calculo que, a essa altura, as cinzas do czar haviam de estar humilhadíssimas”. Garrincha entrara no time principal no lugar de Joel. Pelé, que se recuperava de uma entorse no joelho, pôs Mazzola no banco de reservas. Ambos só souberam que seriam escalados na véspera. Pelé contou, num livro de memórias, que, se dependesse do psicólogo da seleção, João Carvalhaes, ele não teria sido escalado. Depois de pedir a Pelé que fizesse um desenho, o médico foi taxativo: “O Pelé é obviamente infantil. Falta a ele o necessário espírito de luta”. O treinador Vicente Feola não foi na onda de Carvalhaes, que ganhara notoriedade aplicando testes psicotécnicos a motoristas de ônibus.
Em conversa com VEJA, Pelé rememorou o espanto passados os noventa minutos. “Os soviéticos vieram nos cumprimentar ao final da partida, não entendi nada”, diz. “Eles tinham perdido!” No dia seguinte, lembra Pelé, “o Yashin foi até o hotel da seleção para me entregar um vaso de porcelana maravilhoso. Foi o primeiro troféu que recebi jogando pelo Brasil”. Brasileiros e soviéticos estavam hospedados a menos de 100 metros de distância, na cidade de Hindas, a 35 quilômetros de Gotemburgo. O neto de Yashin, Vasily Frolov, localizado por VEJA em Moscou, relembra o que o avô contava daquele encontro. “Lev Ivanovich Yashin foi até a concentração brasileira com a minha avó. Ao se aproximarem de um menino, quase uma criança, ela perguntou, muito curiosa: ‘Quem é ele?’. E meu avô respondeu: ‘É um garoto muito talentoso do Brasil, ele tem só 17 anos e será o melhor do mundo’.” Yashin sabia o que dizia, porque na véspera dera de frente com aquela novidade de um tempo sem televisão, quando as surpresas ainda brotavam do nada.
Na Rússia, a derrota nunca mais foi esquecida. No Brasil, para além da euforia da taça, depois de vitórias contra o País de Gales, a França e a Suécia, serviu como um manifesto estético. Era um tempo de revoluções, com a bossa nova, com os traços dos arquitetos modernistas. Em São Paulo, a peça Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, lotava o Teatro Opinião. Pode parecer estranho que o futebol entre nesse pacote, mas faz sentido sua inclusão. Com Garrincha e Pelé, a partir daquele 15 de junho deixamos de ser vira-latas, na definição de Nelson Rodrigues. Em 1970, quando, pela terceira vez, o Brasil colou uma estrela na camisa, o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini escreveu, num arco que ia de 1958 a 1970: “Quem são os melhores dribladores do mundo e os melhores fazedores de gols? Os brasileiros. Portanto o futebol deles é um futebol de poesia”. Não é mais assim, mas o passado não se apaga. Diz Pelé: “Depois do jogo contra a URSS, o Brasil e eu ficamos conhecidos”.