O que é fetichizar o povo? É assumir que cada passo, cada escarro, cada suspiro, cada berro, cada loja quebrada, cada refrão cantado em jogral, cada polarização das mídias sociais significa algo de sublime.
O fetiche começa com a revolução francesa de 1789 (um “massacre sublime”) e passa pelos movimentos operários do século 19, que Marx (1818-1883) viu de perto.
Esses movimentos garantiram o estado de bem-estar social europeu, às custas, é claro, do resto do mundo, que os europeus exploram até hoje e que não se constitui, “ainda bem”, no mesmo parque temático de direitos que é a Europa ocidental —alguém já viu a Europa querer exportar seu modelo de parque temático para o mundo?
O mais ridículo é que os idiotas da política daqui olham para esse parque temático como algo possível sem homogeneidade étnica (olha só o pau que está rolando por conta dos imigrantes), sem riqueza sobrando (se a Europa ficar pobre vira África), sem imobilidade ascendente na estrutura social (ninguém ganha dinheiro, só os mesmos de sempre), sem portas fechadas aos desgraçados que queriam entrar.
Fetichizar o povo é uma forma de mentalidade hegeliano-marxista diluída. Uma espécie de gozo primitivo narcísico. Um tipo de sentimento oceânico, como diria o velho Freud (1856-1839).
Nesta forma degradada de concepção hegeliano-marxista, existem “forças democráticas” latentes no povo ou forças “isso” e “aquilo” prontas a agir a partir de intenções que tendem a uma organização cada vez mais imanente ao objetivo de justiça cósmico-política.
Nesse delírio, essas forças “querem x”, para isso se “organizam de forma y”. Quando, na verdade, o povo, ou “as massas”, age de modo confuso, impulsivo e, quando articulado, o faz a partir de grupos de comando com agendas próprias, movidas pelos interesses de grupos específicos que pretendem tomar o poder e pronto. E para isso usam da linguagem “o povo quer x”, as “forças democráticas amadurecem no combate” e por aí vai. Os canalhas da política adoram esse tipo de linguagem.
O povo, sim, é capaz de muito. De ficar puto e quebrar tudo a se manifestar de forma (des)organizada a partir das redes ou de grupos de liderança. As pessoas (unidades reais do povo) se movem pelos mais variados interesses, inclusive pela inércia diante dos conflitos que rasgam a sociedade.
O tempo desgasta todas as formas de organização. Era o povo na Bastilha, era o povo gozando com a guilhotina, era o povo nos comícios nazistas, fascistas e comunistas, era o povo na “noite dos cristais” esmagando judeus, era o povo esmagando gente na Guerra Civil americana, era o povo na Guerra Civil russa pós-Revolução Bolchevique, era o povo gozando nos autos de fé na Inquisição, era o povo nos linchamentos, era o povo pedindo intervenção militar na greve dos caminhoneiros.
O povo é um substantivo abstrato na violência qualitativa das teorias políticas e, ao mesmo tempo, um substantivo concreto na violência quantitativa nas ruas.
O povo é confiável? Não. Se olharmos pra história, a resposta é ambivalente. É confiável se você quiser gerar violência social. O sinal positivo ou negativo dessa violência é decidido por quem narrar essa violência.
Alguns setores mais à esquerda reclamaram que faltou ao Brasil a coragem política de usar a crise dos caminhoneiros para derrubar o governo e, quem sabe, instalar um regime de secessão que preparasse formas mais “democráticas” de participação popular, levando à frente o embrião de um regime mais civilizado, sustentado numa vontade popular (ou soberania popular, tratarei aqui como sinônimos).
Esses setores à esquerda são claramente defensores do que se chama “destruição criadora”. “Vontade popular” é outro fetiche nas teorias políticas que veem no povo uma entidade que carrega sobre o si o sinal da graça hegeliano-marxista de evolução política e social.
No meu entendimento primário dessa posição, não a vejo muito distante de meninos esquisitos brincando de Jedis com uma realidade potencialmente violenta, quando o mundo vai às vias do fato. O pecado maior é que são intelectuais públicos irresponsáveis.
Esses Jedis da política projetam sobre a sociedade sua vaidade intelectual.
No primeiro berro, correm para Paris com medo. Dizem que as rupturas políticas podem “ser levadas para o lado do bem”. O sentido verdadeiro dessa frase é “matar as pessoas certas”. Quem plantar violência colherá violência.
Luiz Felipe Pondé é filósofo e ensaísta, autor de ‘Dez Mandamentos (+Um)’ e ‘Marketing Existencial’
O Estado de São Paulo