terça-feira, 4 de abril de 2017

Carlos Andreazza: "N.P."

O Globo

Tem paixão também pela juventude — que nela, frondosa, nunca deixou de vicejar. Quantos autores iniciantes terá apadrinhado e lido com atenção e estímulo?


É sempre Suzy, exibida e carente, quem me recebe à porta (Não direi que goste de mim, mas é elegante). Gravetinho, genioso, para quem antiguidade é posto, só se insinua em latidos, mantido em outro cômodo decerto para evitar o risco de que me desafie a um duelo para o qual eu não teria chance.

Sento-me ao mesmo lugar. Ela também. Já temos rituais. Há guloseimas sobre a mesa, coisinhas gostosas que faz vir do mundo, e sou rapidamente informado de que há um leitão recém-chegado, preparo que jamais enfrentou, mas cuja hora não tardará, destinado a um almoço — “temos de chamar Alberto Mussa!” — para o qual, garante-me, serei também convidado (Fui — e o porquinho, perdoe-me o leitor sensível, desmanchava-se como manteiga ao natural).

Trago-lhe a edição comemorativa, capa dura, de “A república dos sonhos”. Ela a vê pela primeira vez — o volume que celebra as três décadas do romance que me explicou um Brasil; obra cuja leitura sou capaz de reconstituir como se de ontem; livro, de caráter épico, de quando escritores tinham projetos literários que eram também projetos de país, de nação. E eu então estava ali, diante daquela autora, editor dela, mostrando-lhe uma edição daquele livro, um dos meus maiores.

Ela pega o volume, folheia-o, vai e vem pelo encarte que reúne as capas que o romance teve mundo afora. “Ficou imponente, não?” — diz. E penso se não estará a reminiscer o quanto batalhou — feminista fundadora, pioneira entre os que plantaram o Brasil no mapa internacional das letras — para chegar até ali.

Ainda tem sua república (ou serão os sonhos?) nas mãos quando passa a contar sobre a agenda espantosa — dali a uns dias, entre viagens longas, receberá um grupo de jovens escritores ainda não publicados — e é sem afetação, num tom de confidência com o qual faz o interlocutor se sentir o mais importante, que discorre sobre a organização de suas cartas e a preparação de um ambicioso volume de ensaios: “Filhos da América”, chamar-se-á.

Faz tudo ao mesmo tempo. Não está cansada. Desconheço igual capacidade de trabalho — penso — e me admiro, digo-lhe, ante alguém que administre funções executivas numa instituição como Academia Brasileira de Letras e, paralelamente, seja capaz de escrever contos como aqueles de “A camisa do marido”, candentes. Não me refiro exclusivamente à gestão do tempo, mas à ordem mental.

“E o romance novo, como está?” — pergunto. “Perigoso” — responde, aproximando-se e falando baixo, para logo gargalhar. Questiona-me, por sua vez, sobre a experiência de escrever no jornal. Gosta do que lê. Conta que meus escritos têm repercussão, que as pessoas comentam. Refere-se, então, a alguma particularidade de um artigo recente, em que trato de alguém célebre — e me diz: “Fez bem em educá-lo.” Rio. Concordamos que será inútil. Rimos.

Pede que tragam a garrafa de champanhe, que serve em taças coupe. Brindamos. Passa um pouco das 11h. Ela quer saber de Manu, em quem pressente o temperamento do pai, pergunta por minha Carol. É com genuíno interesse que o faz. Tem paixão pela ideia de família, de unidade familiar — não à toa nunca deixou de eleger a sua. Ninguém tem amigos melhores. Não há amiga melhor.

Tem paixão também pela juventude — que nela, frondosa, nunca deixou de vicejar. 

Quantos autores iniciantes terá apadrinhado e lido com atenção e estímulo? Haverá outro, em sua posição, que de tal maneira se cerque de calouros? E isso num métier em que estender a mão a quem começa pode ser entendido como subtrair espaço dos já estabelecidos. Não é, entretanto, generosa somente com escritores.

Lembro-lhe, a propósito, o nosso primeiro encontro. Ou melhor: o primeiro sob os códigos da relação fundamental, a de maior confiança, entre autora e editor. Eu contava 34 anos, acabara de me tornar responsável pelos ficcionistas brasileiros da Editora Record e estava ansioso, sobretudo porque havia experimentado, aqui e acolá, o preconceito — mais ou menos expresso — decorrente do choque entre a natureza daquele cargo de tamanha responsabilidade, que pressupunha erudição e experiência, e a minha idade, indicativa, talvez, de um indivíduo em quem apostar, de algum potencial para as ideias, certamente de vontade; e o que mais?

Jamais soube se lhe apresentei, então, algo além desse conjunto — bem-disposto — de promessas. Mas ela me fez pensar que sim. Tampouco soube se terá encontrado naquele rapaz, à primeira vista, o editor que um dia convidaria a escrever e assinar o texto de orelha de um livro seu. Mas ela me fez sentir que sim. Sei, disso eu sei, sem dúvida, que olhou para mim, ainda à porta, e disse, abrindo os braços para me receber: “Que maravilha a sua juventude! Tenho editor para quatro décadas.”

E riu.

Nunca houve jovem como em Nélida Piñon.