sexta-feira, 28 de abril de 2017

Documentos da Odebrecht: muito além dos vídeos

DIEGO ESCOSTEGUY COM FLÁVIA TAVARES - Epoca



ÉPOCA analisou todas as provas apresentadas pela Odebrecht contra os principais políticos do país. Elas corroboram fortemente as suspeitas de corrupção e lavagem de dinheiro na cúpula do PT, do PSDB, do PMDB – e também entre ministros do governo Temer



Capa edição 984 - home (Foto: Época )


Como bem sabiam os brasileiros até que surgisse a Lava Jato, crimes de colarinho-branco, como corrupção e lavagem de dinheiro, ocasionalmente são descobertos, dificilmente são comprovados – e, graças ao nosso sistema penal ainda leniente, raramente são punidos. Apesar da extrema gravidade do caso brasileiro, no qual a corrupção sistêmica, tal qual um cupim, inseriu-se nos alicerces da República, corroendo-a lenta mas seguramente, os obstáculos para descobrir, comprovar e punir crimes contra a administração pública não constituem uma exclusividade do Brasil. A corrupção, por sua própria natureza, acontece e prospera nas sombras, assim como a lavagem de dinheiro, que normalmente a acompanha. Aqueles que pagam para corromper e aqueles que se vendem para se corromper, e corromper também o Estado, pilhando os cofres públicos, fazem de tudo para não deixar rastros – para não deixar provas dos crimes que cometeram. Não há contrato formal entre corruptores e corruptos. Não há recibo para pagamento de propina. Os acertos costumam ser verbais, não raro em código, e a propina em dinheiro vivo. Como dizem os mafiosos sicilianos:  “O silêncio não comete erros”.

São por essas razões que a espetacular quebra de silêncio da Odebrecht revela-se uma oportunidade sem igual na história do Brasil. Trata-se da mais relevante etapa dos três anos da Lava Jato. Pela combinação única de abrangência, valores envolvidos e gravidade política, o esquema da Odebrecht, por si só, é o maior já descoberto no mundo. Nas últimas semanas, desde que a maior parte da delação da empresa veio a público (ainda há dezenas de casos sob investigação sigilosa), os vídeos com trechos dos depoimentos dos executivos da empresa sacudiram o Brasil. Causaram perplexidade mesmo num país anestesiado pelos sucessivos casos de corrupção expostos pela Lava Jato. As centenas de horas de vídeos com as confissões dos delatores ofereceram um retrato visceralmente realista, em forte contraste com as ilusões vendidas por marqueteiros em campanhas eleitorais, do que é, verdadeiramente, a política brasileira. Trata-se, antes de tudo e para muitos dos principais envolvidos nela, de um negócio – o negócio da vida deles.


A delação da Odebrecht, porém, vai muito, mas muito além dos trechos já conhecidos dos vídeos dos delatores. Todos eles, assim como a cúpula da empresa, tiveram de entregar provas que corroboram os crimes que narraram. Graças a esses documentos, os cerca de 500 gigabytes da delação da Odebrecht constituem, indubitavelmente, o maior e mais rico acervo de corrupção política da história. Um acervo para acadêmicos e historiadores. Um acervo que, além dos depoimentos, contém milhares de documentos. São, ao menos, cerca de 5 mil pedaços de evidência. Incluem comprovantes de pagamentos em contas secretas no exterior, extratos bancários no Brasil e lá fora, contratos de fachada, notas fiscais frias, planilhas internas com registros de entrega de propina em dinheiro vivo, e-mails internos com discussões das negociatas, registros de encontros clandestinos com políticos, extratos telefônicos, comprovantes de viagens…
ÉPOCA analisou a consistência de cada uma das provas apresentadas pela Odebrecht contra os principais políticos do país. A força jurídica de cada evidência depende da relação dela com os fatos que ela pretende provar. Foi esse o critério usado pela reportagem para a avaliação de cada caso. Um exemplo hipotético: se um delator disse que pagou propina a um político por uma obra e apresentou como prova um discurso do mesmo político sobre, digamos, educação, esse documento não tem valor como evidência no processo. Não prova nada. Se o crime confessado envolver propina, a prova apresentada pelo delator, para ter valor, precisa ajudar a provar, em algum grau, que o pagamento de propina de fato transcorreu como narrado – ou ajudar a provar que o político agiu em favor da empresa. A mera existência de um documento, portanto, não significa que o caso seja sólido. A relevância dele está subordinada à corroboração do crime em questão.
Os delatores da Odebrecht, ao contrário do que ocorreu em outros casos recentes de colaboração premiada, entregaram somente documentos que realmente podem ter relevância como prova. A maioria dos principais casos está lastreada, no mínimo, em planilhas internas com registros de pagamento a políticos e e-mails internos em que os funcionários da empresa combinam a entrega da propina – quase sempre no Brasil, em dinheiro vivo. Quase todos os políticos suspeitos no caso Odebrecht aparecem múltiplas vezes nas planilhas, como os tucanos Aécio NevesJosé Serra e Geraldo Alckmin.
Os documentos mais fundamentais, assim, estavam em posse do famoso Setor de Operações Estruturadas da empresa, o tal departamento de propina. Isso vale também para os pagamentos de propina a políticos por meio de contas secretas no exterior – algo comum especialmente com marqueteiros do PT, do PSDB e do PMDB. A organização profissional da Odebrecht, algo raro entre as empresas que se envolvem em corrupção sistemática, assegurou que as provas necessárias fossem preservadas – a Odebrecht chegou a comprar um banco num paraíso fiscal para se proteger das autoridades. Elas estão no sistema Drousys, em que a empresa centralizava a contabilidade da propina e parte das trocas de mensagensem que se combinavam os pagamentos. Uma cópia completa dos dados desse sistema, que estavam na Suíça, foi entregue ao Ministério Público brasileiro recentemente. Os dados das planilhas já entregues, assim como grande parte dos e-mails, estão nesse sistema. Isso facilitará imensamente o principal trabalho dos investigadores a partir de agora: rastrear de onde saiu o dinheiro da propina e quem, efetivamente, recebeu os pagamentos. As chances de sucesso são reais.
As principais provas da delação, no entanto, não se resumem aos documentos que corroboram (nos casos de pagamento em dinheiro vivo) e confirmam (nos casos de pagamento em contas secretas no exterior) as propinas. Para provar que políticos agiram em favor da Odebrecht de maneira a receber a propina, a empresa e os delatores anexaram evidências que demonstram, em alguns casos, a relação próxima e constante com os beneficiários. São documentos que comprovam reuniões, contatos telefônicos e viagens, sempre envolvendo os dois lados: executivos da Odebrecht e políticos suspeitos de beneficiá-la. Esse tipo de documentação é especialmente relevante nos casos dos políticos do PMDB, que costumavam manter contato assíduo com diretores da Odebrecht.
Trocas de e-mails entre diretores da empresa também são fundamentais. Nelas, o método favorito de comunicação da cúpula, a Odebrecht acabava registrando resultados de reuniões com políticos, demandas deles e, não raro, o pagamento das propinas. É o caso de reuniões com senadores do PMDB sobre a compra de Medidas Provisórias de interesse da empresa. Ou da ordem de Marcelo Odebrecht a seu departamento de propina, num dos documentos ainda inéditos revelados por ÉPOCA, para que não pagasse propina ao marqueteiro João Santana, em 2014, até que a então presidente da Petrobras, Graça Foster, ajudasse a Odebrecht num contrato.
Embora haja gradação entre a força das provas em cada caso, com mais peso a um ou outro tipo de documento, nenhum político aparece tão encalacrado na delação quanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As provas apresentadas pela empresa, de todo tipo, sustentam, em larga medida, os graves episódios narrados nos depoimentos por delatores como Emílio Odebrecht, Marcelo Odebrecht e Alexandrino Alencar. Lula, frise-se, nega qualquer ilegalidade, a exemplo de todos os demais políticos suspeitos no caso Odebrecht.
Ressalte-se que os depoimentos dos delatores também são provas – provas testemunhais. Testemunhos, a depender da circunstância, têm o mesmo valor de provas documentais. Tudo depende da credibilidade da testemunha, da materialidade dos documentos (o que eles provam) e das exigências da lei para a correta imputação de cada crime. No caso da Odebrecht, as investigações ainda estão no começo – mas se iniciaram da melhor forma possível. Os procuradores e delegados ainda terão de produzir muitas outras provas, ouvir novamente os delatores, cotejar documentos. E algo importante: submeter essas provas à defesa dos acusados, de maneira que o direito ao contraditório e à ampla defesa seja respeitado. Um dos objetivos da Justiça em casos como esse é buscar a verdade dos fatos. Os documentos entregues pela Odebrecht e analisados por ÉPOCA oferecem um caminho promissor para isso.