É infame aprovar mecanismos voltados para intimidar juízes e procuradores
Cada vez mais parece que o acidente que matou o time da Chapecoense foi causado pela decisão insensata de forçar o limite de autonomia da aeronave. Uma pane seca perfeitamente evitável destruiu o futuro brilhante de um time que crescia tanto pelo talento em campo quanto pelo trabalho sério de sua administração.
Na madrugada seguinte, mais uma decisão insensata e irrefletida assumiu o risco de destruir parte do nosso futuro. A Câmara dos Deputados desfigurou a proposta das 10 Medidas contra a Corrupção e embutiu entre elas mecanismos claramente destinados a intimidar juízes e procuradores. Acusar ou investigar com elementos sabidamente forjados deve ser e já é crime. Mas acusar ou investigar com a convicção de que os elementos são suficientes, mesmo quando o juiz ou o tribunal discordou dessa avaliação, não é crime em lugar algum do mundo.
Para quem acha que as 10 Medidas não eram essenciais, fica o alerta: o Brasil tem um dos sistemas de Justiça criminal mais anacrônicos do mundo. Peculiaridades como a prescrição retroativa ou o habeas corpus quando o réu está solto, sem a acusação sequer ser informada de sua impetração, só existem aqui. A Operação Lava-Jato está sendo conduzida, apesar das disfunções atuais do sistema, com grandes dificuldades técnicas e a necessidade constante de interpretações inovadoras e arrojadas.
A deliberação da Câmara dos Deputados não pode ter sido tomada pelos motivos certos.
Não houve esforço de modificação ou adaptação das medidas consideradas polêmicas:
elas foram simplesmente suprimidas. A aplicação do teste de integridade poderia ter ficado mais regrada, restrita a corregedorias independentes ou órgãos de controle e limitada apenas a algumas categorias de servidores públicos. Na prescrição, alguns prazos poderiam ter sido reduzidos em troca do fim da prescrição retroativa. Nos acordos, poderiam ter sido incluídos critérios quantitativos para as propostas do Ministério Público. Mas nada disso foi sequer cogitado pelos deputados.
Mais que tudo, é infame aprovar mecanismos tão claramente voltados para intimidar juízes e procuradores a pretexto de combater a corrupção. Esses mecanismos servem apenas para inibir a atuação das instituições, sem dar nenhuma contribuição para a investigação de um juiz ou procurador potencialmente corrupto ou que abusa de suas prerrogativas.
Práticas como a invocação da condição funcional para obter vantagem indevida ou se escusar de dever — trata-se da conhecida “carteirada” — continuam de fora, talvez porque não sejam só juízes e procuradores que nelas incorrem.
O Brasil não pode dar-se ao luxo de desistir das 10 Medidas. Elas são nossa melhor chance em mais de 50 anos de contar com um sistema de Justiça criminal mais moderno e equilibrado. Elas são o voo que ainda pode pousar em segurança.
Marcello Miller é procurador da República