A verdade, como sempre, foi a primeira vítima da guerra de Putin. Nas telas da televisão em Moscou, a Rússia faz uma intervenção humanitária contra os extremistas da Ucrânia, em resposta ao pedido de socorro dos compatriotas da Crimeia
A História nunca se repete, a gente sabe. As palavras de Putin ontem parecem adaptadas do texto da União Soviética para justificar a invasão da Tchecoslováquia no século passado, marcando o fim da primavera de Praga, a primeira na lista das muitas primaveras a acabarem sem final feliz. Em agosto de 1968, tanques russos atravessaram as fronteiras, teoricamente com o objetivo de “garantir os ganhos do socialismo” e convocar os “verdadeiros comunistas” a lutarem contra a Revolução de Veludo dos jovens tchecos.Na Rússia do século XXI, Putin diz que iniciou a operação na Crimeia “para proteger a minoria russa e a segurança dos cidadãos russos vivendo na Ucrânia”. Nos dois casos, tudo só “enquanto se espera a normalização da situação política e pública no país”, dizia a nota do governo russo esta semana, repetindo a fórmula de 46 anos atrás, em que anunciava um “estacionamento provisório” das tropas, à espera da “normalização”, um eufemismo que significou repressão e dominação até a queda do muro de Berlim.
“É preciso explicar a Putin que ele está na época errada, o século XX acabou em 1991, com o fim da União Soviética”, diz Thomas Gomart, do Instituto Francês de Relações Internacionais, no “Le Monde”.
Putin sabe mas não gosta do novo lugar da Rússia no mundo. Tem na entrada do seu gabinete um retrato do czar Nicolau I, aquele que lutou pelos interesses da Rússia contra todas as grandes potências. Acha o desmantelamento da URSS a “maior catástrofe geopolítica do século XX”, e sua obsessão é restaurar o orgulho russo e o império desmoronado. Nos últimos meses, colocou o país de volta no cenário internacional, esteve presente nos bastidores dos seis ou oito acontecimentos que mexeram com o planeta.
Na hora de saborear a vitória dos Jogos Olímpicos de Sochi, os seus vizinhos estragaram a festa, roubando a cena com a luta contra um governo autocrático, repressivo e corrupto bem parecido com o comandado por ele no Kremlin. E pior, estavam decididos a morrer para escapar da zona de influência russa e se aproximar da União Europeia, tão mal-amada nos países-membros, mas transformada em símbolo de um futuro melhor para os ucranianos. E se o exemplo pega na Rússia?
Para evitar dúvidas, agiu. Desrespeitou acordos internacionais para não deixar escapar a zona tampão entre a Rússia e a Europa, seu primeiro sócio comercial, via de trânsito para as exportações de petróleo à UE e base principal de sua frota no Mar Negro. Diante das ameaças dos EUA e da União Europeia, riu. “Não querem vir ao G-8? Não precisam”, debochou. Sanções econômicas? Advertiu que, num mundo globalizado, elas podem afetar também os países que estão impondo o castigo.
“A única represália de peso seria o congelamento dos recursos da Rússia e dos russos nos bancos do ocidente e a suspensão dos negócios financeiros na Rússia”, diz Charles A. Kupchan, professor de Assuntos Internacionais da Universidade de Georgetown.
EUA e Europa estão desarmados frente à Rússia. A UE está amarrada em suas próprias fragilidades: a débil retomada econômica seria afetada, 40% do petróleo do bloco vêm da Rússia e 80% do gás transitam pelo gasoduto da Ucrânia. Dá para imaginar o Reino Unido congelando fundos de todos os russos super-ricos, donos de parte considerável de propriedades e negócios em Londres? Os EUA nem pensam em ações armadas de represália: estão justamente discutindo um corte em seu orçamento militar , deixando o Exército com o menor número de soldados desde os anos 40 e transformando em sucata equipamentos sob medida para a Guerra Fria.
Não dá para descartar nenhuma hipótese para o desenrolar dessa crise, mas Putin também está com jeito do rato que ruge. Enfrentar os ucranianos e correr o risco de cair num novo atoleiro como a URSS no Afeganistão em 1979 não vai fazer nada bem para as cores da Rússia. A invasão acelerou o fim da era soviética, um precedente bom para ser considerado por Putin