Grupo de estudantes e professores visita mini fazenda na feira Agrishow, em Ribeirão Preto| Foto: Divulgação/De Olho No Material Escolar
No próximo mês de janeiro, férias de muitos brasileiros, o governo Lula receberá caravanas de militantes em Brasília numa mobilização para incluir pautas progressistas e de viés de esquerda dentro do Plano Nacional de Educação 2024-2034.
Até o MST e a CUT foram convidados para contribuir com as políticas públicas nacionais que serão encampadas pelo Ministério da Educação na próxima década. Curiosamente, instituições como a Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA), que é a principal representante do setor agropecuário, não estão listadas no documento oficial com os “atores sociais” convocados para a conferência.
Uma das diretrizes do documento-base da Conferência Nacional de Educação 2024, chancelado pela Presidência da República e pelo Ministério da Educação em outubro, diz que “se faz urgente a contraposição efetiva do Estado, nas suas diversas esferas federativas, às políticas e propostas ultraconservadoras”.
Dentre os alvos, são listados os colégios cívico-militares (pede-se sua “desmilitarização”), o homeschooling (visto como tentativa de descriminalizar a educação familiar) e, diz o texto, os diversos grupos “que desejam promover o agronegócio por meio da educação”.
Quanto aos colégios cívico-militares, o atual governo já acabou com o programa em nível federal, mas não conseguiu impedir que o sucesso do formato se espalhe pelo país. No Paraná, por exemplo, em consulta pública à comunidade, mais 83 escolas (de 126 consultadas) decidiram integrar o modelo cívico-militar no ano que vem. Isso elevará o total para 289 colégios, inclusive os 12 abandonados pelo MEC, que serão incorporados pelo estado. Outras 28 escolas vão votar, ainda este ano, a adesão ao sistema, podendo o número final ultrapassar 300 colégios.
Em relação à educação domiciliar, a tentativa de movimentos esquerdistas de criminalizá-la foi negada pelo STF, mas ainda falta regulamentação por parte do Poder Legislativo, o que deixa as famílias expostas a interpretações locais ideologizadas.
Esquerda declara guerra a iniciativas que valorizam o agro
Na frente de combate ao agronegócio, estão na mira o programa De Olho no Material Escolar (DONME), que surgiu no interior de São Paulo, em 2020, como reação a conteúdos ideológicos, distorcidos e desatualizados sobre a agropecuária brasileira em livros didáticos, e o programa Agrinho, iniciativa da Federação da Agricultura do Paraná (Faep) que existe desde 1996 e é replicada por vários outros estados.
No Paraná, o Agrinho mobiliza todos os anos mais de um milhão de estudantes, e 80 mil professores, em concursos de redação e projetos pedagógicos envolvendo temáticas sociais, de meio ambiente, saúde e cidadania.
Na plenária estadual preparativa para a conferência de educação em Brasília, sindicalistas reunidos em Curitiba aprovaram uma moção de repúdio à “série de prejuízos e violações que o Programa Agrinho acomete aos objetivos da escola pública”. Não foi detalhado, no entanto, quais prejuízos seriam esses. A Secretaria Estadual de Educação, que participou da conferência preparatória, informou que não assinou nenhuma moção contra o Agrinho e que, pelo contrário, dá total apoio ao programa.
Contatada pela Gazeta do Povo para comentar o ataque a seu projeto de responsabilidade social, a Faep informou, em nota, que o material didático do Agrinho apresenta um conteúdo “de acordo com a realidade das crianças e professores, com atualizações constantes de especialistas de diversos estados e também do exterior”.
Programa Agrinho existe desde 1996 e faz sucesso em concursos de redação e projetos pedagógicos sobre meio ambiente, saúde e cidadania, entre outros temas transversais | Michel Willian / Divulgação FAEP/SENAR
Ideologia à frente da educação
“Em 2020, por exemplo, o tema ‘Agro pela Água’ permitiu que os alunos trabalhassem, em sala de aula e na comunidade, o uso racional deste recurso, para que não volte a faltar no futuro. Naquele ano, a estiagem castigou tanto o campo quanto a cidade”, aponta a Faep.
Na avaliação da instituição, “os ataques ao Programa Agrinho, consolidado na educação do Paraná e com diversos exemplos de contribuição para formação do cidadão, são infundados, e têm como origem pessoas despreparadas, que não conhecem a essência do trabalho e que, em muitos casos, colocam a ideologia à frente da educação”.
Outro alvo da Conae 2024 é o movimento De Olho no Material Escolar. Trata-se de uma associação sem fins lucrativos e sem ligação com grupos políticos criada em São Paulo por pais de alunos inconformados com conteúdos distorcidos sobre a agropecuária nos livros didáticos. A proposta do movimento é revisar esses materiais, a partir de dados científicos, públicos e atualizados. A curadoria tem o apoio de instituições como a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), Instituto de Zootecnia, Embrapa, Insper e FGV.
A empresária Letícia Jacintho, de Barretos (SP), fundadora do movimento, observa que muitas afirmações encontradas nos materiais didáticos retratam realidades obsoletas, de cem anos atrás.
O que particularmente tem irritado os ativistas de esquerda é que o movimento não busca confrontação, mas cooperação com editoras de livros didáticos, para que os autores conheçam a realidade do agronegócio nacional, com visitas a fazendas, feiras agropecuárias e agroindústrias.
Agro do século 20 ou 21?
O movimento criou uma dinâmica positiva junto às principais editoras do país. Mario Ghio, CEO da editora Somos Educação, classifica o "De Olho" como "uma ponte fundamental com a geração de tecnologia, com os pesquisadores e com a atividade econômica do mundo agro".
"De fato, na sala de atual, o mundo agro está sendo retratado ainda muito mais com a imagem do século 20 do que do século 21. Então, nosso esforço é trazer a percepção do mundo agro para o século 21", afirmou Ghio após encontro de editoras.
No interior de São Paulo, durante uma filmagem o autor de um livro didático quis ver onde estavam os boias-frias cortando cana, sem se dar conta de que, atualmente, quase a totalidade da colheita da cana-de-açúcar no estado é mecanizada. Muitos nunca ouviram falar do Vale do Silício Caipira, em Piracicaba, que concentra dezenas de empresas agritechs, várias delas incubadas pela Esalq, ao lado de gigantes como Bayer, Raízen e Suzano.
“É algo que eles não conheciam, é uma cortina que se abre. E o setor educacional se encanta com isso, afinal, a editora quer mostrar o melhor. Não consigo acreditar que um professor levante de manhã planejando dar a pior aula. Todo mundo tem vontade de dar uma boa aula. Muitas das editoras estão listadas na bolsa, empregam gente, e tem noção da sua importância para a sociedade”, observa Letícia Jacintho.
Visitas in loco e Agroteca mostram a realidade
Estudantes e professores também têm participado dessas excursões para ver in loco as áreas de conservação nas fazendas, o uso de EPI, o plantio direto, a Integração Lavoura Pecuária Floresta (ILPF) e outras boas práticas que não são contadas pelos detratores do agronegócio.
Nesta reação aos mitos e ataques contra o setor rural, o movimento De Olho no Material Escolar criou uma biblioteca digital, a Agroteca, com dezenas de conteúdos de livre acesso, como artigos, games, vídeos, infográficos, reportagens e livros, abordando em bases científicas temas sobre o agronegócio exigidos das escolas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
“Para saber sobre índio, a pessoa tinha que entrar no site da Funai; se é desmatamento, no site do Ibama; se é solo, na Embrapa. Com frequência, são materiais muito técnicos, de difícil tradução para as crianças. Por isso, às vezes o autor vai no Google e acaba adotando a linguagem das ONGs internacionais, de fácil acesso. O que nós estamos fazendo é pegar conteúdos que estão prontos e trazendo para um repositório, que é a biblioteca virtual. Não estamos influenciando na escrita. A gente simplesmente abre fontes para os autores. Eles usam o que quiserem”, ressalta a fundadora do movimento.
Grupos marxistas defendem ataques do Enem ao agro
Desde que surgiu, o movimento De Olho no Material Escolar tem sido atacado pela esquerda, por associações como a De Olho nos Ruralistas, e por grupos de professores ligados ao marxismo agrário.
“Buscam a todo custo impedir que nas escolas públicas e particulares se debata sobre desmatamento e queimadas, sobre trabalho escravo e superexploração do trabalho, sobre concentração fundiária, da riqueza e da renda, sobre a violência no campo, como se tudo isso fosse coisa do passado e não existisse mais no campo brasileiro, no qual reinaria o agro pop, tech, tudo”, reagiram, ainda em 2021, professores do Grupo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Geografia Agrária da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e do Grupo de Trabalho sobre Assuntos Agrários da Associação dos Geógrafos Brasileiros, também do Rio de Janeiro. Este último aprovou recentemente “Nota de Repúdio à Tentativa de Censura ao ENEM 2023”, defendendo as questões ideologicamente distorcidas para atacar o agronegócio.
Sobre a crítica de que o movimento De Olho no Material Escolar tem viés ideológico e anticientífico – justamente aquilo que se propõe a combater – Letícia Jacintho lembra que os questionamentos são feitos a partir de dados científicos atuais. “Temos o apoio de grandes instituições de pesquisa que participaram de toda a transformação que aconteceu na agricultura ‘tropical’ nas últimas décadas, e que nos dão curadoria e embasamento científico sobre os temas do setor rural, como Esalq e Instituto de Zootecnia (IZ), além de instituições educacionais como Embrapa, Insper, FGV e outras”, rebate.
Instituições ligadas ao agro reagem à ofensiva ideológica
Em reação à ofensiva do governo Lula contra o agro no setor educacional, quatro instituições assinaram uma "carta à nação brasileira" preparada pela Associação de Olho no Material Escolar, que aponta pontos críticos e equivocados do documento-base para o Plano Nacional de Educação.
De saída, causou estranhamento o curto prazo entre a convocação da conferência (11 de setembro) e a divulgação do documento-base (18 de outubro). "A expectativa de obtenção de documento plural, passível de beneficiar o pleno acesso à educação de qualidade por todos os brasileiros, foi frustrada", diz a carta. Em vez de construir consensos, despertou debates acalorados que podem se estender por meses e anos. "É inegável que o conteúdo divulgado pela CONAE 2024 é motivo de séria e constante preocupação para o cidadão brasileiro, combalido pelo fardo de desafios históricos que o setor educacional nacional não tem conseguido superar", pontua a nota.
Além da DONME, assinam a carta a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), a Associação Nacional dos Distribuidores de Insumos Agrícolas e Veterinários (Andav), a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Sociedade Rural Brasileira (SRB).
Querem embutir no PNDE posição refratária à iniciativa privada
Veja os pontos críticos apontados pelas instituições no documento-base da Conae 2024, que norteará o Plano Nacional de Educação:
Ausência de base técnico-científica na abordagem do conteúdo: há referências;
pejorativas e parciais com juízos de valores questionáveis sobre gestões anteriores desde a democratização do País;
Postura refratária à inciativa privada e seu papel no desenvolvimento econômico, além de pautas legítimas à sociedade, como o amplo debate ao direito das famílias de educarem seus filhos (democratização da educação); a exemplo da educação domiciliar;
Limitado rigor técnico na análise do PNE 2014-2024, atendo-se apenas a sumário descritivo dos seus resultados, sem refletir sobre a pertinência das metas, das estratégias ou dos indicadores;
Falta de rigor técnico na contextualização do tema de cada eixo, utilizando-se de um discurso prolixo com margem a questionamento do teor ético, o que dificulta a comunicação (para a sociedade) e o entendimento das razões que levaram às escolhas dos direcionamentos;
Ausência de análise metódica dos problemas, das suas causas e consequências e das suas relações lógicas de modo a se permitir a definição de objetivos, diretrizes e metas, além da concatenação de iniciativas a fim de se garantir efetividade e maximização de recursos;
Ausência de clareza, aprofundamento e contextualização de temas relacionados à ideologia e identidade de gênero. Ausência de proposição de letramento.
Necessidade de distinguir fatos dos mitos
Ouvido pela reportagem ainda antes da divulgação do documento esquerdizante preparatório para a Conae 2024, José Otavio Menten, professor da Esalq/USP e presidente do Conselho Científico Agro Sustentável, sublinhou que o desafio na área educacional, no que tange à agropecuária, está em fazer prevalecer os fatos, e não os mitos.
“Essas pessoas, ou mal informadas, ou por vontade ideológica de ser contra o agro, acabam sendo mais eficientes na comunicação do que os técnicos e os cientistas. Essa tentativa de desvalorizar o campo é extremamente injusta. Aquela história do Jeca Tatu indolente, do coronel que explora o empregado e que produz muito pouco, do filho menos competente do proprietário que fica na roça, o resto vai para a cidade, isso mudou completamente", diz Menten.
"O Brasil é líder mundial na agricultura tropical. Fizemos uma revolução. Não dá para entender hoje no Brasil quem não tenha orgulho de nosso agro. Não somos fiscais. No ambiente acadêmico é normal a divergência, mas queremos competência técnica”, assegura.
Se o agro brasileiro fez uma revolução tecnológica e produtiva nas últimas décadas, um novo capítulo da contrarrevolução do governo Lula já tem data para lançamento: de 28 a 30 de janeiro de 2024, em Brasília, na Conferência Nacional de Educação 2024.
Marcos Tosi, Gazeta do Povo