Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Na última terça-feira (19) e ontem (20), após o início do recesso do Judiciário e faltando poucos dias para as celebrações de Natal, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli deu um enorme presente natalino para Beto Richa, ex-governador do Paraná, e para a J&F, empresa dos irmãos Wesley e Joesley Batista.
Primeiro, Toffoli determinou a anulação de todas as investigações e processos criminais contra Beto Richa de uma tacada só, no atacado. Em seguida, Toffoli suspendeu a multa de R$ 10,3 bilhões aceita voluntariamente pela J&F, em decorrência de seus esquemas de corrupção, confessados em acordo com o Ministério Público Federal (MPF) e outros órgãos de controle.
Ambas as decisões vêm na esteira de uma outra decisão recente de Toffoli, que anulou as provas do acordo de leniência da Odebrecht, enterrando provas de corrupção contra 415 políticos de 26 partidos, incluindo quase um terço dos senadores e ministros e quase metade dos governadores da época em que o acordo foi firmado.
Toffoli, em sua sanha anti-Lava Jato, não se preocupa mais em decidir de acordo com as provas e com a lei faz tempo, aplicando, como fundamentação, narrativas fantasiosas do lulopetismo que carecem de qualquer comprovação. No caso da Odebrecht, por exemplo, mesmo depois que se comprovou falso o seu argumento de que não teria havido pedido de cooperação por intermédio do Ministério da Justiça, ele manteve a decisão.
No caso de Beto Richa, a principal alegação lulopetista usada por Toffoli é a de que haveria um conluio entre juiz e acusação na Lava Jato, mas a decisão está recheada de erros jurídicos básicos que nem mesmo estudantes de Direito cometeriam em uma prova da faculdade. Separei 7 razões pela quais a decisão de Toffoli no caso Beto Richa é ilegal:
1) A decisão de Toffoli não tem nenhuma fundamentação jurídica, o que é obrigatório por lei. A falta de fundamentação, aliás, é causa de nulidade das decisões judiciais. Toffoli diz que havia um suposto conluio entre acusação e juiz, mas ele não explica qual o conluio. Em qual ato? Qual a prova? Não há nada para além de uma afirmação, aliás, com um erro material, porque ele fala em conluio entre “acusação e defesa” - hã?
2) Toffoli anulou as operações Rádio Patrulha e Quadro Negro, duas operações que são do Ministério Público estadual e do Tribunal de Justiça do Paraná e que não envolveram a atuação de nenhum dos agentes federais da Lava Jato - nem eu, nem os demais procuradores da força-tarefa e nem o ex-juiz Sergio Moro. Se o fundamento da anulação era suposto conluio entre agentes federais, como é que Toffoli anula operações no âmbito estadual? Não faz nenhum sentido.
Toffoli, em sua sanha anti-Lava Jato, não se preocupa mais em decidir de acordo com as provas e com a lei faz tempo
3) A decisão de Toffoli não diz o que fazer com mais de R$ 1,2 bilhão já devolvidos aos cofres públicos por meio de acordos de leniência e de colaboração premiada, inclusive de correligionários e pessoas próximas a Beto Richa que confessaram os crimes, entregaram provas e devolveram dinheiro. Os valores já foram utilizados em obras de infraestrutura no Paraná, como o trevo Cascavel. Vai devolver o dinheiro para os ladrões confessos? Essa omissão contraria a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que exige que a decisão judicial exponha suas consequências;
4) Toffoli acolheu a alegação de incompetência do juiz, dizendo que o juiz Sergio Moro não deveria ter atuado no caso. Contudo, o juiz Sergio Moro já tinha se declarado incompetente para atuar na Operação Integração e o caso foi conduzido pelo juiz da 23ª Vara Federal de Curitiba, e não da 13ª Vara. Trata-se de mais uma falsa premissa, um erro básico e juvenil da decisão de Toffoli;
5) Ao dizer que Moro não deveria ter atuado no caso, Toffoli está apontando um cisco no olho alheio e não vê a trave no seu olho. Isso porque Toffoli não era competente para a decisão que emitiu. A petição da defesa de Beto Richa foi dirigida diretamente a Toffoli, mas ele não era o relator da Operação Integração, mas sim o ministro Luís Roberto Barroso, para quem foi distribuída livremente a primeira Reclamação do caso, em 08/08/18 (Reclamação nº 31220);
6) Como é que Toffoli derruba várias operações, investigações e processos por corrupção multimilionária gravíssima sem sequer ouvir as pessoas que cita na decisão como Diogo Castor, Sergio Moro e eu? Não existe contraditório? Ele não quer saber a verdade? Como estabelecer a verdade sem ouvir o outro lado? Pior, não ouviu nem o Ministério Público, o que é um procedimento obrigatório;
7) Por fim, a decisão de Toffoli, de 22 páginas, é praticamente um copia e cola da defesa de Beto Richa. Toffoli decide anular tudo em 2 pequenos parágrafos ao final da decisão, quando ele acolhe os argumentos de Richa, diz que houve conluio e pronto. A mera reprodução da defesa de Richa também é um indicativo da ausência de fundamentação jurídica da decisão e é mais uma evidência de sua ilegalidade.
Depois de emitir essa decisão absurda, no dia seguinte, veio à tona outra medida, talvez pior ainda: Toffoli aliviou a barra da J&F e liberou o caixa da empresa em R$ 10,3 bilhões, valor que ela mesma concordou em pagar à sociedade em decorrência de esquemas confessados de corrupção. Aqui há problemas jurídicos similares que vão muito além do sigilo da decisão, que deveria ser pública.
O ministro disse que há indícios de que a empresa firmou o acordo de leniência sem voluntariedade, isto é, sem vontade própria, apenas para atender a pressões do MPF e de outros órgãos de controle, mas ele não indica em nenhum momento que indícios seriam esses, ou quais são os elementos de prova que comprovam isso.
O ministro não indica porque esses motivos não existem. Toffoli havia acusado, sem qualquer prova, a força-tarefa de Curitiba de pressionar réus para acordos por meio de prisões, mas nesse caso não se trata de pessoas físicas, mas de pessoa jurídica. Qual a pressão? Empresa não vai presa - e, aliás, se fosse presa e a medida fosse legal, não haveria problema algum, mas a prisão aí está fora de questão.
E qual seria a pressão? Some-se que o acordo foi feito por outra força-tarefa, a Greenfield, de Brasília, que jamais foi acusada levianamente de fazer acordos sob pressão. Se a pressão debaixo da qual a empresa fez o acordo é a da lei e a das consequências legais dos crimes, então não é uma pressão ilegítima.
Um questionamento importante e que Toffoli não enfrenta e nem explica na decisão é por que o ministro não se declarou suspeito para decidir casos da J&F, já que a esposa de Toffoli, Roberta Rangel, é advogada da J&F. Ela não atua diretamente nesse caso da leniência, mas advoga para a empresa dos irmãos Batista no maior litígio corporativo atual do país: a disputa com a Paper Excellence pelo controle da Eldorado Celulose, estimado em R$ 15 bilhões de reais. Quem também advoga para a J&F, depois de dar decisões que beneficiaram a empresa em litígios milionários, é o ex-ministro do STF Ricardo Lewandowski, principal cotado para ser o próximo ministro da Justiça de Lula.
As decisões de Toffoli reforçam o padrão de impunidade com políticos e empresários poderosos adotado pelo STF nos últimos anos e coloca em xeque a efetividade de todo o sistema judicial brasileiro na luta contra a corrupção, o que foi alvo de duras críticas da OCDE ao Brasil neste ano.
As três decisões de Toffoli - dos casos Odebrecht, Beto Richa e JBS - mostram por que temos tanta corrupção no Brasil: a corrupção no país é bem defendida. Não interessa o que os poderosos fizeram, não interessa se roubaram bilhões, sempre há algum argumento, por mais frágil que seja, que blinda os corruptos.
Esse tipo de decisão, com argumentos frágeis, reforça a percepção da sociedade de que a justiça está sendo comprometida em favor de interesses políticos e de que a justiça não tem a coragem de combater o crime dos poderosos no Brasil. Se Lula foi acusado de ser o maestro da macrocorrupção brasileira revelada na Lava Jato, o STF pode ser acusado de ser o maestro da impunidade.
Deltan Dallagnol, Gazeta do Povo