Foto Agência Brasil
Não há em nossa história, nem em seus piores momentos, um registro tão chocante da aplicação de tortura em massa por parte do Estado brasileiro quanto esse que o país inteiro vê agora, na frente de todo o mundo. Pior ainda, essa tortura serial não está sendo executada nos porões da polícia política de uma ditadura, e sim pelo mais alto tribunal de justiça do país – ninguém menos que o Supremo Tribunal Federal. É um momento de demência. Por todas as leis brasileiras e internacionais, obviamente, a autoridade pública está proibida de impor castigo físico a qualquer ser humano.
Trata-se de tortura – e tortura é crime inafiançável, punido com até 16 anos de prisão e com agravantes quando é praticado por agentes do Estado e atinge pessoas com deficiência física ou mais de 60 anos.
Mas, no momento, o STF não apenas está torturando mais de 1.300 cidadãos brasileiros. Faz isso com o argumento de que aplica a lei – no caso, contra os acusados de terem tomado parte no quebra-quebra do dia Oito de Janeiro, em Brasília.
A tortura praticada pelo STF é a imposição do uso de tornozeleira eletrônica em pessoas que até agora não foram condenadas por crime algum, não têm antecedentes criminais e receberam liberdade provisória, por insuficiência de provas ou por outras razões. Os ministros dizem que não; na sua maneira de ver a lei, o uso da tornozeleira é uma “medida preventiva de cautela”.
Com isso, alegam, cria-se obstáculos para os acusados fugirem do país (a propósito, os seus passaportes estão apreendidos), para prejudicarem a ação penal e para cometerem “novos crimes” – embora não tenham, segundo a lei, cometido nenhum crime até o momento. É argumento de guarda em campo de concentração.
A maioria dos punidos não tem dinheiro nem para ir a Jundiaí, quem dirá para o circuito Nova York-Paris-Lisboa. Não são ameaça nenhuma para a sociedade; têm endereço fixo, família e nunca praticaram um crime em suas vidas. Não têm a mais remota possibilidade de atrapalhar o ministro Alexandre de Moares, condutor-chefe dos processos, na tomada de alguma decisão – e muito menos de mudar algo que ele já tenha decidido. Não ajuda em absolutamente em nada a manutenção do estado democrático de direito. É puro e simples castigo.
Trata-se de tortura – e tortura é crime inafiançável, punido com até 16 anos de prisão e com agravantes quando é praticado por agentes do Estado
Os ministros do STF podem fazer quanta propedêutica, hermenêutica e metafísica quiserem, mas o artigo 1 da lei 9.455, que regula o assunto, diz que constitui crime de tortura: “Submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico e mental”.
O que poderia haver de mais claro do que isso? Não há dúvida nenhuma de que os cidadãos punidos com a tornozeleira estão sob a autoridade do STF. Não há dúvida de que a perspectiva de ser trancado de novo na cadeia é uma grave ameaça. Não há dúvida, enfim, que a exigência causa intenso sofrimento físico e moral. Ao impedir que a vítima se afaste a mais de 300 metros do lugar onde está confinada, não permite que ela tenha acesso a tratamento médico adequado.
Causa graves perturbações ao sono, ao tocar por algum problema técnico e exigir a ação imediata da autoridade policial. Impede o indivíduo de trabalhar ou de procurar trabalho – a menos que encontre um emprego a até 300 metros de sua casa.
A tornozeleira obriga o punido a fazer viagens de até 300 quilômetros, a cada semana, apenas para comparecer diante da autoridade policial – está proibido de trabalhar, mas tem de ir o tempo todo à delegacia. (Não existe essa exigência em nenhuma lei brasileira.) Da mesma forma, as vítimas têm as suas contas bancárias bloqueadas, incluindo-se aí salários e aposentadorias; só conseguem se alimentar e pagar suas necessidades básicas através de atos de caridade. Não se trata, em suma, apenas de tortura.
É impor ao indivíduo sofrimentos que vão além da pena prescrita para os seus crimes – uma violência tanto mais perversa quando se leva em conta que ainda não receberam nenhuma condenação. É aonde chegamos.
J.R. Guzzo, Gazeta do Povo