sexta-feira, 24 de junho de 2022

'A guarapiranga pede socorro', por Isabela Cucolicchio e Bruno Freitas

 

Invasões criminosas de terrenos protegidos por leis ambientais cercam as represas Guarapiranga e Billings | Foto: Felipe Rau/Estadão Conteúdo/AE


Represa que abastece quase metade de São Paulo combina poluição com ocupação irregular descontrolada das margens


“Bastava mergulhar a caneca e beber a água.”
O engenheiro agrônomo Mario Fontes conheceu uma São Paulo que hoje parece ficcional. Na infância, nos anos 1960, aproveitava os fins de semana velejando com a família e nadando numa Represa de Guarapiranga limpa e distante da expansão urbana da metrópole. Eram cenas de uma cidade que não existe mais.

Mario hoje não nada mais na represa. Há três anos, dirige a ONG Nossa Guarapiranga, que vem tentando mobilizar governos e órgãos que dividem a responsabilidade pelo manancial na zona sul da cidade. O desafio envolve uma teia burocrática cheia de personagens. 

A Guarapiranga pede socorro. Abastecendo quase 5 milhões de paulistanos, concentra poluição em níveis cada vez mais perigosos e um cenário de ocupação irregular descontrolada nas margens. É uma terra à que a lei chega com dificuldade, quando chega. 

Ao contrário de outras grandes cidades pelo mundo que conseguiram oferecer vida e oportunidades em torno de lagos ou represas, São Paulo passou outros problemas na frente. Mas, em algum momento, a capital dos paulistas provavelmente vai precisar desarmar essa bomba ambiental e social.

Alguns dados preocupam mesmo quem não tem uma ligação emocional com o local, como os envolvidos na Nossa Guarapiranga. A ONG mantém uma parceria com pesquisadores da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, que medem os níveis de sujeira da represa desde 2015. Mesmo com uma lei estadual, de 2006, que fixou para o local uma meta de poluição aceitável, a reserva de água está longe do ideal.

“Da publicação da lei para cá, a qualidade da água só piora”, afirma Mario Fontes. “E não é porque eu acho. A gente tem dados técnicos, com algumas substâncias acima dos níveis normais. A qualidade está piorando, fundamentalmente pela contaminação de esgotos. São esgotos domésticos, que são despejados irregularmente em córregos e vão parar na represa”.

“Possivelmente cancerígenos”

Atualmente, mergulhar na Guarapiranga para se divertir requer uma boa dose de coragem, como o olfato de qualquer visitante pode atestar. Segundo a bióloga Marta Marcondes, responsável pelas medições periódicas em vários pontos do espelho d’água de 27 quilômetros quadrados, os níveis de poluição atuais representam um desafio para o tratamento da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp).

“Existe uma grande quantidade de organismos causadores de doenças, como gastroenterites”, afirma a pesquisadora da Universidade Municipal de São Caetano do Sul. “A maioria morre quando passa por tratamento com cloro. Porém, existem alguns que têm a capacidade de ultrapassar esse processo”.

De acordo com outro estudo independente, o “Mapa da Água”, duas substâncias perigosas têm sobrevivido aos tratamentos. São os ácidos haloacéticos e os trihalometanos, classificados como “possivelmente cancerígenos” pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, órgão da Organização Mundial da Saúde (OMS). O levantamento é baseado em dados oficiais do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), do Ministério da Saúde, compilando o abastecimento de empresas em todo o país — com material coletado já no destino final. 

A pesquisa apontou entre 2018 e 2020 a presença de ácidos haloacéticos e trihalometanos em níveis acentuados em 17% dos testes. Os dados abertos do Sisagua já oferecem registros de 2022, nos quais é possível verificar que, no primeiro trimestre, as substâncias em questão apareceram acima do patamar aceitável em cinco de dez medições de águas que tiveram origem na Guarapiranga.

Construída em 1908 pela antiga Light, a Represa de Guarapiranga é um lago artificial com 200 bilhões de litros de água e distante apenas 20 quilômetros da Praça da Sé

“Verificou-se em vários momentos que a água que a Sabesp coleta da Guarapiranga, trata e manda para as casas apresenta tanto os trilhalometanos quanto os ácidos haloacéticos”, diz a pesquisadora Marta Marcondes. “Isso é real”.

A reportagem acionou a Sabesp com uma lista de contestações, mas não obteve resposta. Oficialmente, a empresa divulga apenas o que chama de “parâmetros básicos”, como cor, turbidez e coliformes fecais. A companhia de abastecimento atende 370 municípios paulistas, levando água a cerca de 28 milhões de pessoas. Segundo registros do Ministério da Saúde, o órgão paulista é o que mais realiza testes de qualidade em todo o Brasil.

Saem 2 milhões de árvores, entra 1 milhão de ocupantes ilegais

A mudança de paisagem é agressiva para quem conhece bem a Guarapiranga, como Adrian Meusburger, dono de um negócio de aluguel de lanchas no local. O empresário frequenta a represa há quatro décadas e diz que, “nos últimos três anos, a situação piorou de uma forma mais acelerada”.

Meusburger se refere ao entorno da represa, onde o que era praticamente só verde havia algum tempo hoje virou uma fila de bairros improvisados. A orla da Guarapiranga vem sendo dominada por diversas ocupações irregulares, criadas à margem da lei. O fenômeno começou com a atuação de movimentos populares de habitação, mas, de uns anos para cá, foi controlado pelo crime organizado, como detalha um dossiê de 457 páginas preparado pelo ex-vereador Gilberto Natalini (PV).

“Nos últimos sete anos, houve uma onda de invasões feita pelo crime organizado”, afirma Natalini, que recebeu ameaças de grupos da área em mais de uma oportunidade. “São quadrilhas do tráfico de drogas que resolveram investir no mercado imobiliário irregular. São lotes construídos à revelia do poder público, que é inerte, complacente e muitas vezes conivente com as práticas criminosas desses grupos.”

Anúncios de imóveis em construções ilegais costumam ser vistos em terminais de ônibus próximos à Guarapiranga
Anúncios de imóveis em construções ilegais costumam ser vistos em terminais de ônibus próximos à Guarapiranga | Foto: Reprodução

O dossiê preparado pelo ex-vereador mapeia todas as áreas ao redor da represa e calcula que 2 milhões de árvores foram derrubadas para dar lugar às ocupações. Foram identificados 48 mil lotes, com terrenos negociados como se fossem legais. Os terminais de ônibus da região estão cheios de anúncios, com unidades vendidas pelo valor médio de R$ 40 mil. Nas estimativas do político, o mercado irregular já movimentou R$ 2 bilhões.

Neste cenário, com cerca de 1 milhão de pessoas vivendo nas áreas próximas, a Guarapiranga recebe cada vez mais esgoto clandestino, como flagra o vídeo cedido por Marco Antônio dos Santos, morador da região.

O descarte ilegal tem acelerado o processo de assoreamento, que é o acúmulo de sedimentos no fundo de uma reserva de água. Trata-se de um fenômeno natural, mas que tem sido intensamente acelerado, ameaçando o futuro da represa da zona sul.

Assim, a área de proteção ambiental vai sendo gradualmente destruída. O Jardim Noronha e o Grajaú, por exemplo, já foram repletos de Mata Atlântica e fauna exuberante, com presença de tucanos e bugios. Mas a realidade mudou. Em uma visita breve à Guarapiranga, a reportagem identificou alguns pontos com mata sendo queimada, um conhecido processo para a preparação de terrenos. Procurada, a prefeitura argumenta que tem combatido os loteamentos irregulares. A administração paulistana alega que conseguiu recuperar 94 hectares.

“Foram demolidas 176 casas totalmente irregulares e em locais de extremo risco, 107 áreas embargadas, 94 postes de energia demolidos, 49 máquinas e veículos apreendidos, 103 motosserras e outras ferramentas apreendidas e 114 pessoas conduzidas ao Distrito Policial”, diz a nota da prefeitura.

Quem manda na Guarapiranga

Construída em 1908 pela antiga Light, a Represa de Guarapiranga é um lago artificial com 200 bilhões de litros de água e distante apenas 20 quilômetros da Praça da Sé, no centro de São Paulo. Oficialmente, quem responde pelo local é a Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae), que tem a outorga para explorar a água bruta armazenada no local, transferindo os recursos para usinas de sua propriedade.

Já a Sabesp tem a permissão da Emae para retirar água da Guarapiranga e tratá-la em estações, como a do Alto da Boa Vista. Estado e prefeitura também estão envolvidos em responsabilidades atreladas à represa, como na gestão das áreas de preservação no entorno. 

Da parte do governo estadual, em novembro de 2021 foi lançado um projeto para melhorar o saneamento básico na região, com investimento de R$ 203 milhões. Os trabalhos envolvem a implantação de cerca de 6 mil ligações de esgoto e estações elevatórias, com cronograma de entrega até 2025. A autoridade paulista fala em 360 mil pessoas diretamente beneficiadas.

Construções ilegais à margem da Represa de Guarapiranga, na região metropolitana de São Paulo | Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Já a Emae informou que tem trabalhado para conter o “despejo irregular de resíduos em áreas de sua propriedade”. A empresa de energia também argumenta que mantém parcerias com o governo estadual e a Sabesp para a “instalação de estações de tratamento e afastamento de esgoto”.

No começo de junho, a ONG Nossa Guarapiranga conseguiu reunir órgãos e governos, quando foram firmados compromissos de colaboração para melhorar a situação. O encontro contou com a presença de Fernando Chucre, secretário estadual de Infraestrutura e Meio Ambiente, além de diretores da Sabesp e da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). Entre os temas pendentes da pauta, ficou a definição sobre de quem é a responsabilidade legal por investimentos sanitários nas áreas de ocupação irregular.

Como diz o ativista Mario Fontes: “Cachorro de dois donos morre de fome”. O diretor da ONG Nossa Guarapiranga acrescenta: “É um problema muito complexo. Não é uma chave que você vira e desvira. São muitos tentáculos”.

Potencial econômico e turístico desperdiçado

Somente 20 minutos separam a Guarapiranga e o bairro nobre do Morumbi. Com trânsito comum, em meia hora é possível chegar ao local saindo da Avenida Faria Lima, famosa área de negócios paulistana. Ou seja, a represa está muito próxima da pulsação urbana de São Paulo, dentro dos limites da metrópole. Condições semelhantes a essas em outras cidades do mundo propiciaram o desenvolvimento econômico e turístico.

Segunda maior cidade da Alemanha, Hamburgo cresceu em torno dos lagos Alster Interior e Exterior, em local cercado de prédios elegantes, que oferece passeios em embarcações e restaurantes badalados. É um verdadeiro cartão-postal, que enche a cidade de visitantes e traz dividendos. Aproveitamentos parecidos são vistos no Lago Michigan, de Chicago, e no Lago Ontário, em Toronto. 

Todos esses destinos estão cercados de vida, mas costumam ser paralisados nos meses de frio rigoroso do Hemisfério Norte, algo que não afeta a Guarapiranga. Na represa de São Paulo, o que falta é visão política e empreendedora. 

“É jogada fora essa possibilidade de exploração turística, que gera empregos, renda para a cidade, além de uma melhoria de qualidade de vida”, diz Adrian Meusburger, ativista da Nossa Guarapiranga e dono de negócios de lancha na represa. “Temos o potencial de ecoturismo. A gente tem 305 espécies de aves catalogadas, além de uma flora exuberante. Temos lontras, capivaras, bichos preguiça, uma diversidade muito grande aqui. Estamos dentro da Mata Atlântica.”

Adrian Meusburger tem um negócio de aluguel de lanchas e acompanha a degradação da Guarapiranga nas últimas décadas | Foto: Bruno Freitas/Revista Oeste

Os dias de caneca no barquinho

No começo de junho, a Prefeitura de São Paulo lançou um projeto de Parceria Público-Privada (PPP) para tentar “revitalizar a orla da Guarapiranga e incentivar o turismo ecológico e náutico”. A ideia é conceder sete parques no entorno da represa à iniciativa privada por um prazo de 25 anos.

Segundo os editais, em fase de consulta pública até julho, o futuro responsável vai precisar investir cerca de R$ 21 milhões de imediato, além dos R$ 468 milhões que se estimam para o custeio de cada parque nos 25 anos de operação. Estão previstas contrapartidas ambientais, como remoção de lixo nos corpos hídricos, combate ao assoreamento e plantio de mudas.

Hoje, mesmo suja, a Guarapiranga conta com locais abertos à população, além de redutos náuticos tradicionais, como o Yacht Club Santo Amaro, conhecido pelos entusiastas da vela. Ainda não se sabe se a iniciativa da prefeitura vai ter capacidade de repaginar a “praia dos paulistanos”, mas o caminho ainda parece longo até o patamar de cartão-postal que outras cidades desfrutam.

“Em Chicago, os caras mais bacanas têm as casas de frente para o lago”, observa Mario Fontes, da Nossa Guarapiranga. “São Paulo poderia ser uma joia, com um monte de atividade náutica. Mas como você vai incentivar a criançada a ter aula de vela se a água da represa está contaminada?”.

Se hoje São Paulo tenta ser capaz de entregar aos moradores um novo Rio Pinheiros, a um custo de R$ 3 bilhões em projeto do governo estadual, sonhar com uma Guarapiranga limpa, visualmente agradável e financeiramente lucrativa parece legítimo. Quem sabe os dias da caneca no barquinho sejam novamente possíveis!

Leia também “A economia desmente os pessimistas”

Revista Oeste