sábado, 15 de janeiro de 2022

'Matutando sobre a economia em 2022', por Ubiratan Jorge Iorio

 

Foto: Shutterstock


Considerando a baderna e os problemas econômicos estruturais e os conjunturais postos pela pandemia, o que devemos imaginar para o ano que começa?


Passados os foguetórios laudatórios do Ano-Novo, é tempo de enfrentar os apuros futuros da nova época, tarefa que exige, no campo macroeconômico, entre outras coisas, matutar sobre o que se pode esperar dos comportamentos da economia, da inflação de preços e do emprego. Escrevi propositalmente “matutar” — no sentido de meditar ou refletir —, e não “estimar” ou “prever” —, porque aprendi com a Escola Austríaca quanto é imprudente confiar cegamente em previsões geradas por modelos econométricos, por não se coadunarem com o mundo real, em que os indivíduos não se comportam como objetos, tal como esferas que fazemos deslizar em planos inclinados, ou frutas que lançamos repetidamente do alto de torres, para então quantificar suas reações.

As atividades econômicas não são passíveis de estudo em livros de física, pois se constituem em um conjunto bastante complexo de decisões individuais, de ações humanas tomadas ao longo de um tempo entendido dinamicamente como um fluxo contínuo de novas experiências, e que se desenvolvem em ambientes em que prevalecem as ausências de conhecimento pleno e de sua homogeneidade, portanto, em que sempre existe alguma incerteza genuína, subjetiva, que não pode ser medida. Assim sendo e embora, por dever de ofício, devamos acompanhar as previsões quantitativas (até porque são essas que o mercado costuma demandar), as confiáveis são as qualitativas.

Que tendências para a nossa economia podemos então esboçar neste início de 2022? Mais especificamente, o que podemos dizer sobre o comportamento esperado do PIB, aumentos de preços e emprego?

Olhar apenas para investimentos públicos, infelizmente, é um cacoete que prevalece há décadas e que vai exigir outras tantas para ser eliminado

Antes de responder, é necessário enfatizar dois defeitos graves que são costumeiramente encontrados nas análises de alguns que se apresentam como “especialistas”. A primeira é a utilização exclusiva e generalizada de modelos de demanda agregada de curto prazo, seguindo a tradição keynesiana de que a insuficiência de demanda imobiliza e sufoca a produção, sem a devida atenção para o lado da oferta. Ora, o principal problema econômico atual resulta de choques negativos de oferta — e não de falta de demanda —, e esse entendimento requer políticas econômicas diferentes das tradicionais, receitadas nos livros-textos e nos artigos da “Teoria Monetária Moderna” — uma bolorenta aberração.

A segunda é um descaso indesculpável com a importância dos investimentos privados no processo de crescimento econômico, ao ponto de alguns analistas estarem prevendo efeitos desastrosos sobre a produção, atribuindo-os à “falta de investimentos”. Olhar apenas para investimentos públicos, infelizmente, é um cacoete que prevalece há décadas e que vai exigir outras tantas para ser eliminado. A verdade é que o verdadeiro motor do crescimento autossustentado, o impulsionador do voo de águia são os investimentos privados, cuja essência, comparativamente aos públicos, são sua maior eficiência e produtividade. Esses “especialistas” precisam atentar para o fato de que a política de concessões que o governo vem adotando estimula fortemente os investimentos privados e que, nos 131 leilões realizados de 2019 a 2021, R$ 822 bilhões estão assegurados para investimentos futuros — o que significa que já existem investimentos privados para o corrente ano.

Choque de oferta

A reflexão mencionada no início do artigo deve conter dois tipos de considerações: as estruturais, que são de longo prazo e que se constituem em fenômenos internos ou endógenos; e as conjunturais, transitórias, de caráter externo ou exógeno.

Comecemos pelas últimas, que, na linguagem misteriosa dos economistas, costumam ser normalmente designadas como choques de oferta. Boa parte das dificuldades econômicas, desde o início de 2020, pode ser atribuída a choques negativos de oferta, e não de demanda. Choques de oferta são mudanças na atividade econômica causadas por eventos inesperados, que subitamente diminuem (ou aumentam) o suprimento de um bem ou serviço particular, ou de bens e serviços em geral, mudanças repentinas que afetam as condições dos mercados desses bens ou serviços e, obviamente, os seus preços. O que acontece quando se trata de choques de oferta negativos é que a produção diminui e o preço aumenta, enquanto, no caso de serem positivos (por exemplo, motivados por avanços tecnológicos e supersafras), os efeitos são opostos. Em ambos os casos, trata-se — é bom repetir — de fenômenos transitórios.

A economia brasileira passou, recentemente, por quatro choques de oferta negativos, sendo que dois deles ainda não cessaram e não se pode afirmar quando vão terminar.

O primeiro dispensa apresentação. É a pandemia, que, além de ser a maior da nossa história, teve seu poder destruidor amplificado por uma inacreditável politização promovida em nome da “ciência” e da “preocupação com a saúde pública”, por um conjunto poderoso e perigoso de forças: (a) a oposição, que se diz democrática, mas que até hoje não aceita a derrota de 2018; (b) o globalismo centralizador que os próceres da nova ordem mundial tentam nos impor; (c) a velha e apodrecida imprensa, que a enxergou desde o início como aliada na tarefa de destruir um governo que lhes fechou as torneiras das verbas despejadas em troca de apoio ou silêncio; (d) muitos governadores e prefeitos, que libertaram sem nenhum pudor os tiranos que traziam adormecidos em seus peitos; (e) e um Judiciário em que a pobre Themis — a deusa da justiça, filha do deus do céu, Urano, e da deusa da terra, Gaia — preferiu seguir as inclinações da mãe e adquiriu o vício nada celestial de desvendar apenas o olho esquerdo, fazendo sua balança pender quase sempre para esse lado. O choque da pandemia começou no início de 2020, estendendo-se por 2021 e, sendo 2022 um ano par e, portanto, de eleições, é crível que não vai terminar tão cedo.

Quebra das cadeias globais

O segundo choque é consequência do anterior, mas, dada a sua importância para a economia, merece ser destacado. Trata-se da quebra das cadeias globais, entendidas como redes abrangendo vários continentes e países e cujo propósito é o suprimento de bens e serviços para produtores e consumidores. Com a globalização, as empresas passaram a depender de suas redes de suprimentos para dispor dos componentes necessários para a montagem de seus produtos quando precisarem e em todos os lugares do mundo onde atuam. Trata-se de um sistema just-in-time de terceirização, que dá flexibilidade e permite que as empresas concentrem sua produção apenas em insumos que podem agregar mais valor.

Mesmo enfrentando tantos choques internos e externos, o agronegócio foi o melhor jogador em campo

Entretanto, quando alguns elos da cadeia se quebram, como vem acontecendo, a coisa fica muito feia, porque as linhas de produção globais são cortadas muito rapidamente, com consequências tão mais prejudiciais quanto mais duradouras forem as rupturas. A demanda, estimulada pelas políticas monetárias e fiscais frouxas adotadas em nível mundial a título de atacar os efeitos da pandemia, tornou-se estruturalmente maior que a oferta, uma oferta já enfraquecida, provocando escassez, gargalos, atrasos de entregas e elevações de custos ao longo da complexa estrutura global de produção, inclusive nas etapas produtivas iniciais, como nas de matérias-primas e energia, mais afastadas do consumo final.

É preciso, contudo, ter em conta que os seus efeitos sobre as atividades econômicas, embora sejam desastrosos, na forma de obstáculos à sua recuperação e de aumentos gerais de preços, são transitórios, até que as cadeias voltem à normalidade. No entanto, é preciso que os bancos centrais se deem conta de que políticas monetárias extremamente expansionistas, como as praticadas nos últimos anos, só vão agravar e estender o problema, prolongando a inchação da demanda e, portanto, sancionando os aumentos de preços.

As agruras do clima

O terceiro e o quarto choques de oferta foram, respectivamente, a pior crise hídrica enfrentada pelo Brasil em cem anos e as agruras do clima. A Hidrelétrica de Itaipu registrou a menor produção de energia dos últimos 26 anos e a Bacia do Rio Paraná, a pior estiagem dos últimos 70 anos, levando o Sistema Nacional de Meteorologia (Inmet) a emitir um alerta de emergência hídrica pela primeira vez em cem anos. Escassez (ou excesso) de chuvas e fatores climáticos sempre produzem impactos na economia, especialmente sobre os custos da energia e, sobretudo, nas lavouras, como atesta a queda de 8% no agronegócio observada no terceiro trimestre de 2021. O nosso agronegócio merece muitos elogios, mesmo enfrentando tantos choques internos e externos, de cima e de baixo, com os agricultores tendo de olhar para o céu procurando chuva e ao mesmo tempo para o celular, verificando como estavam as entregas dos fertilizantes que compraram do outro lado do planeta, e, mais uma vez, foi o melhor jogador em campo.

Mas a tarefa de mapear e enfrentar os desafios do futuro, além de considerar esses choques de oferta, deve manter a preocupação com os problemas estruturais, endógenos, de conhecimento de todos. No plano estrito da economia, há que se preservar a responsabilidade fiscal e deslanchar as reformas imprescindíveis que vêm sendo sucessivamente postergadas em decorrência de resistências políticas: a administrativa e a tributária, bem como as privatizações e algumas minirreformas que ainda podem ser executadas. Entre outras vantagens, elas contribuirão para aumentar a produtividade e, portanto, para espantar de uma vez por todas a galinha que vem há décadas insistindo em ensaiar voos pífios no nosso galinheiro, abrindo espaço para o crescimento autossustentado.

Vocação para o atraso

Ao meditar sobre o futuro, precisamos, também, considerar outros graves problemas, que, embora não sejam diretamente econômicos, vêm prejudicando enormemente o desempenho da economia há muito tempo. São vícios intrínsecos, que fazem parte da essência de nossa república, inerentes a uma indefensável vocação para o atraso e para a bagunça institucional.

O principal é o nosso sistema político, que, desde 1889, vem caminhando tropegamente, de mudança em mudança, haja vista que: (a) não poucos presidentes cumpriram a integridade de seus mandatos; (b) já passamos por diversos solavancos bruscos e nada democráticos, como nos anos 1930 e 1960; (c) temos uma quantidade absurda de partidos políticos, quase todos alheios a qualquer doutrina, ao mesmo tempo em que não podemos ter candidaturas independentes; (d) a nossa Federação é tão somente uma palavra insculpida na Carta Magna; (e) a independência e a harmonia entre os Poderes têm sido episódicas; (f) o coronelismo e o patrimonialismo ainda dão as caras enrugadas por aqui; e (g) existe uma concentração de poder incompatível com qualquer democracia sólida, seja em meia dúzia de mãos no Congresso, que determinam o que vai entrar em pauta e o que não vai, seja no Judiciário, que passou a se imiscuir em praticamente tudo, a ponto de um integrante de nossa Corte máxima ter declarado abertamente, em palestra recente no exterior, que ele e seus pares vêm exercendo o “Poder Moderador”. Uma afirmação no mínimo estranha, já que a Constituição federal não outorga essa atribuição a nenhum dos Três Poderes. Em suma, a desarrumação institucional é flagrante.

Considerando essa baderna e os problemas econômicos estruturais e os conjunturais postos pela pandemia, o que devemos imaginar quanto aos rumos da economia no ano que começa? Iniciando pela questão do PIB, mesmo estando o mercado apostando nas vacas magras (variando de queda a aumento de 0,5% do PIB), é possível apostar em um desempenho melhor, tendo em vista o comportamento do investimento privado. Adicionalmente, o perfil do crédito vem mudando em favor do crédito livre, que é mais eficiente. Em termos de inflação, dada a austeridade fiscal e monetária, não é preciso ser um gênio para afirmar que a taxa de crescimento do IPCA deverá cair bastante até dezembro, situando-se dentro da meta; e, quanto à recuperação do emprego, vale notar que, uma vez que as taxas de ocupação e de participação da força de trabalho ainda são inferiores aos níveis registrados antes da pandemia, a tendência é que subam neste ano.


Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. Instagram: @ubiratanjorgeiorio

Revista Oeste