domingo, 30 de janeiro de 2022

‘Os russos são ressentidos com a Ucrânia’

 Segundo o cientista político Gunther Rudzit, a independência dos ucranianos jamais será tolerada pelo Kremlin

O cientista político Gunther Rudzit
O cientista político Gunther Rudzit | Foto: Divulgação

O conflito geopolítico que envolve a Ucrânia atingiu níveis altíssimos de tensão. Neste momento, cerca de 175 mil soldados russos estão posicionados próximo à fronteira ucraniana, aguardando o sinal verde de Moscou. Em resposta, os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) reforçaram o envio de equipamentos militares a Kiev. A fervura aumentou.

A possibilidade de um conflito bélico fez com que Reino Unido, Austrália e Estados Unidos ordenassem a retirada de seus diplomatas da capital ucraniana. É um recado para Vladimir Putin, que respondeu o aceno com o envio de aviões, navios e tanques para o Sul da Ucrânia.

Para entender as raízes desse conflito e analisar as consequências globais de uma eventual guerra no Leste Europeu, Oeste entrevistou Gunther Rudzit, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Relações Internacionais na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Segundo Rudzit, os desdobramentos de um confronto influenciarão diretamente o xadrez geopolítico. “Não podemos esquecer que as potências globais disputam seus espaços de influência”, disse. “A China aguarda o desfecho do conflito que envolve a Ucrânia para decidir se invadirá Taiwan. Pequim está com uma lupa na mão, observando quais serão as movimentações da Rússia e dos Estados Unidos.”

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Qual é a origem do conflito que envolve a Ucrânia?

O primeiro ponto é que a Ucrânia sempre fez parte do Império Russo, foi sua primeira capital. Então, os russos entendem que a Ucrânia pertence à Mãe Pátria. O segundo ponto é o seguinte: a declaração de independência da Ucrânia, proferida em 1991, acelerou a dissolução das Repúblicas Socialistas Soviéticas [URSS]. Desde aquela época, há um problema na psique do cidadão russo comum. Os russos têm a percepção de que as potências ocidentais, especialmente os Estados Unidos, querem novamente dissolver seu país, desmembrá-lo. Digo isso porque dividi apartamento com um russo, na época em que estava fazendo mestrado na Universidade Georgetown. Ele tinha exatamente o mesmo entendimento do povo russo. Esse ressentimento fez com que os russos passassem a considerar as regiões próximas à Rússia como sua área de influência. Em 2018, quando se discutia a possibilidade de expandir a Organização do Tratado do Atlântico Norte [Otan] para Georgia e Ucrânia, isso acendeu o sinal vermelho para Vladimir Putin. Não à toa, houve a invasão da Georgia. Em 2014, quando a Ucrânia aventava a possibilidade de entrar na União Europeia [UE], houve a anexação da Crimeia. Agora, aproveitando-se de um momento de fraqueza dos Estados Unidos, Putin está traçando uma linha vermelha para rachar a Otan.

O que a Rússia quer da Otan?

Putin sonha em ver a Otan desfeita. Caso isso não seja possível, o objetivo é tirar as tropas da Otan dos países do Leste Europeu. Se nenhuma dessas opções for viável, a intenção é dividir e enfraquecer a Otan, de modo a impedir que a organização tenha influência. Putin está conseguindo fazer isso.

Por que a Ucrânia e outros países da região querem participar da Otan? 

Porque essas nações foram dominadas pela URSS. Meus avós paternos vieram da Letônia para o Brasil em 1922. Meu pai, embora tenha nascido em solo brasileiro, alimentava um sentimento antirusso muito forte. Meus parentes não conseguiam ver uma bandeira vermelha. Meu avô decidiu vir ao Brasil depois que seu irmão foi morto por um bolchevique. Por que razão mataram meu tio-avô? Ele era dono de um pequeno comércio. Então, naturalmente, a população que foi dominada pela URSS é traumatizada. Esse é o sentimento dos países do Leste Europeu em relação à Rússia. Assim que a URSS desabou, essas nações solicitaram a entrada na UE. Foi apenas o primeiro passo para entrar na Otan e ter o guarda-chuva nuclear norte-americano como proteção.

A Europa depende do gás russo. Isso é um poder de barganha do presidente Vladimir Putin, correto?

Putin está se aproveitando do momento em que a Europa mais precisa de gás natural, pois o continente está no inverno. Ele quer terminar a produção do gás russo, o Nord Stream 2, porque os países europeus são cada vez mais dependentes desse insumo. A decisão de Putin vai na contramão dos planos dos líderes europeus, especialmente de Angela Merkel. O grande projeto europeu, capitaneado pela Merkel, era integrar economicamente a Rússia à Europa, mesmo que o país não fizesse parte da UE. Isso impediria o surgimento de conflitos como o que está acontecendo agora. O plano da líder alemã era mais liberal, do ponto de vista das Relações Internacionais. Essa teoria defende que, quanto maior a integração econômica, tanto menor o risco de guerra. Os custos de uma guerra nunca superariam as vantagens obtidas por meio do comércio.

Existe a possibilidade real de a Rússia tomar Kiev?

Não acredito em uma invasão em larga escala. Primeiro, porque haveria um custo econômico muito grande. A principal vantagem norte-americana é que o mundo depende do dólar. Todas as transações baseadas em dólar precisam passar por algum banco dos Estados Unidos. Quando isso acontece, a jurisdição do país se impõe. Na prática, as transações podem ser bloqueadas. O mesmo processo ocorre com o euro: se a transação financeira passar pelo Banco Central da Europa, poderá haver sanções. O gás e o petróleo são baseados em dólar e euro, correto? Então, há um problema aí. A segunda questão é que a Rússia sofreria em eventual conflito bélico, principalmente porque o inverno não foi tão forte quanto o esperado. O solo não está congelado, o que dificulta a passagem de tanques pesados. O terceiro fator que tornaria improvável a invasão de Kiev é o alto número de mortes, tanto do lado ucraniano quanto do russo. A Rússia se isolaria ainda mais, teria um custo diplomático altíssimo. Além disso, a Ucrânia é um país grande, onde a população está se armando para fazer uma guerra de guerrilha. Por ora, descarto um conflito bélico. No entanto, a população tem de se preparar para eventual escassez de energia, gás e comida. Em um conflito maior, ainda que não ocorra invasão, o Putin já mostrou ser capaz de derrubar todos os sistemas de empresas e governos.

Uma eventual guerra impactaria o Brasil de que maneira?

O Brasil já sofre o impacto desse conflito, tanto que a Petrobras precisou aumentar o preço dos derivados do petróleo. Numa guerra em larga escala, o barril de petróleo poderá ser avaliado em US$ 100, o que levaria o litro da gasolina a custar R$ 10. Imagine a consequência disso na inflação. Nesse cenário, os juros não devem parar em 12%, terá de ser maior. O Banco Central precisará agir. Também podemos falar de uma valorização do dólar. Se isso acontecer, os produtos derivados vão encarecer. Em caso de conflito em larga escala, a economia brasileira será mais facilmente afetada. Também não podemos esquecer que fazemos parte do BRICS. Nesse caso, o Brasil dará apoio à Rússia? O governo norte-americano certamente exigirá uma postura diplomática do governo brasileiro. E faz sentido: como o Brasil não condenará a invasão de um país independente?

E em termos globais, quais seriam as consequências geopolíticas?

Vivemos novamente em uma era de choque das grandes potências. Descarto, no entanto, a ideia de uma nova Guerra Fria. Naquela época, havia sistemas econômicos [capitalismo e socialismo] com integrações comerciais praticamente inexistentes. Na Cúpula de Moscou, a partir de 1972, houve alguma relação comercial. Mas isso foi cortado em 1979, quando a URSS invadiu o Afeganistão. Hoje, a Rússia é economicamente integrada ao mundo. Ainda assim, não podemos esquecer que as potências globais disputam seus espaços de influência. A China, por exemplo, aguarda o desfecho do conflito que envolve a Ucrânia para decidir se invadirá Taiwan. Pequim está com uma lupa na mão, observando quais serão as movimentações da Rússia e dos Estados Unidos.

É possível os Estados Unidos jogarem uma bomba nuclear para acabar com a guerra?

Não, definitivamente. Como sempre pergunto em sala de aula: vale a pena perder seu país por causa de alguma outra nação? Na verdade, não se trata de perder o próprio país, mas acabar com a Terra. Hoje, Estados Unidos e Rússia têm capacidade de destruir cerca de 16 vezes o tamanho do planeta. Há tantas armas nucleares acumuladas que, em eventual conflito bélico, acabaríamos com qualquer tipo de vida na Terra. O que seria tão importante para que as potências globais promovessem esse cenário? A Ucrânia é tão relevante assim? Tenho certeza de que a Casa Branca dirá que não. 

Esse conflito pode desencadear a 3ª Guerra Mundial?

Não, a lógica da pergunta anterior se mantém. Há uma capacidade de destruição gigantesca das potências globais. A Rússia, por exemplo, é muito forte. A China, por sua vez, seria capaz de causar um dano irreparável à sociedade norte-americana. Todas as cidades dos Estados Unidos seriam completamente destruídas em eventual conflito com Pequim, porque os chineses aceleraram o desenvolvimento de sua capacidade nuclear. Realmente, estamos falando de uma escala de poder muito maior, que vai além dos Estados Unidos. Em eventual guerra, a quantidade de radiação na atmosfera afetaria o planeta inteiro. A capacidade destrutiva das armas termonucleares e das bombas de hidrogênio faz com que os custos de uma guerra sejam grandes demais.

Ao avaliarmos o cenário atual, as movimentações dos Exércitos norte-americano e russo, o que pode acontecer?

Isso tudo faz parte do jogo. Os Estados Unidos estão se mostrando dispostos a ir para um conflito, e a retirada de seus diplomatas da Ucrânia é prova disso. Isso é uma medida de segurança, para depois não serem acusados de deixar vidas norte-americanas em risco. Também serve para mostrar que os Estados Unidos estão dobrando a aposta, não recuarão. Isso é apenas parte das negociações; há muitas informações às quais nunca não teremos acesso. O material que sai na imprensa é aquele que ambos os governos querem. 

Para a imprensa ocidental, Putin passa a impressão de que não sairá do poder nunca. Uma eventual derrota no conflito que envolve a Ucrânia pode ameaçar o governo do líder russo?

Começo a responder à pergunta por uma situação que vivenciei na Universidade Georgetown, no início de 1999. Nas eleições norte-americanas que aconteceriam no ano seguinte, a disputa seria protagonizada por Al Gore e George Bush. Durante uma aula, o professor fez uma enquete para saber qual seria a opção de voto dos norte-americanos. O Bush ganhou de lavada. No fim da aula, meu amigo russo, aquele com quem dividia um quarto na universidade, levantou da cadeira e escreveu “Putin” na lousa. Fui em direção ao meu colega e perguntei por qual razão imaginava que Putin venceria a eleição. Disse que o futuro presidente faria a Rússia grande e forte novamente, que faria o país ser respeitado pelos Estados Unidos. Isso em 1999. Essa situação descreve com exatidão o funcionamento da psique russa. Putin não está no poder apenas por ser um autocrata controlador, mas também porque o povo russo gosta dessa postura. Ao contrário do que a imprensa ocidental imagina, a popularidade de Putin está aumentando.

Edilson Salgueiro, Revista Oeste