sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

'Ódio do bem: uma constatação póstuma', por Caio Coppolla

 



Na morte, Olavo de Carvalho comprovou um fenômeno que descreveu em vida


“Folheando” esta revista, deparei com uma lista curiosa de manifestações odientas ao recém-falecido Olavo de Carvalho. Tão logo pousei os olhos em tamanho rancor, imaginei o prazer intelectual do filósofo, estivesse ele acompanhando a reação à sua morte. Primeiro, por vencer, mais uma vez, a indiferença que castiga a maioria daqueles que já pisaram nesta Terra; segundo, por atestar a acuidade da sua descrição e crítica às contradições da esquerda e, especialmente, à paralaxe cognitiva. Mas, antes de explorar esse conceito e seus exemplos, que tal um pouco de ódio do bem, cortesia da nossa empática intelligentsia?

José de Abreu, ator(mentado): “Morreu o pai do bolsonarismo. Falta o filho”. — Citação elencada em posição de destaque pela proeza de celebrar a morte de um e desejar a morte de outro em menos de 50 caracteres;

Gregório Duvivier, ator (risos), escritor (muitos risos) e humorista (poucos risos): “Morreu de estupidez e levou muita gente junto”. — Ah, claro, assassinou multidões com suas palavras e opiniões!;

Jean Wyllys, ex-BBB, ex-político e exilado (por iniciativa própria): “Esse mentiroso, difamador sórdido, morreu me devendo reparação pelos danos materiais e morais que me causou. É festejar que esse monstro tenha desaparecido do planeta”. — Entendemos a preocupação financeira e a mesquinhez do ex-deputado ressentido, afinal ele celebra a vida — ou melhor, a morte — em euros;

Coluna publicada pela revista Vejao negacionismo ao qual ele se aferrou […] ajudou a cavar sua própria sepultura. Literalmente”. – Revelou o jornalista com convicção, contrariando nota oficial do médico particular do paciente;

Coluna publicada pela Folha de S.Paulo“…acho a morte de uma girafa mais importante que a de Olavo de Carvalho”. — Sério!? Então onde estão seus artigos publicados sobre mortes de girafas?

“As girafas, assim como os lêmures e os gnus, não discutem o óbvio. […] Além disso, raras girafas fumam cinco maços de cigarros por dia”. — Some-se a isso o fato de que muitas girafas são mais humanas que o articulista da Folha, que, na mesma coluna, se esforçou e conseguiu bater o próprio recorde: “Olavo de Carvalho, que morreu nos EUA, foi enterrado às pressas […]. Imagine se Jair Bolsonaro o trouxesse para enterrá-lo aqui, com honras de Estado. Seria uma profanação dos cemitérios brasileiros, onde estão tantos que ele e Bolsonaro ajudaram a matar”. — Que estratégia inovadora! Culpar o governo e os mortos pelas tragédias do país, com direito a acusação de “assistência ao genocídio”.

As citações elencadas expõem o caráter de seus autores e veículos, que não hesitam em agredir os mortos quando isso lhes soa politicamente conveniente. Por outro lado, ignorando as próprias palavras ofensivas e atitudes extremistas, condenam a polarização, pregam o diálogo e posam de democratas sensatos — parafraseando Milan Kundera, é a insustentável incoerência do ser, que vale tanto para os influenciadores quanto para seus (milhares, milhões de) influenciados.

“Adeptos do ‘ódio do bem’ pregam um ambiente político tolerante e plural, mas nesse mundo teórico não haveria espaço para o comportamento deles mesmos”

Numa análise mais detida e menos apaixonada, fica claro que essa incongruência entre discurso e ação extrapola a mera contradição inata à condição humana e presente, em maior ou menor grau, no comportamento de todos nós, pecadores. Excetuados os casos patológicos de má índole — e não são poucos —, pessoas que produzem, replicam e endossam esse tipo de conteúdo ignóbil atuam dessa maneira porque creem que sua postura é legítima. Mas, para agir assim, o agente do “ódio do bem” (emissor, consumidor, disseminador) tem de se colocar fora do modelo social fraterno e civilizado que ele próprio propõe. O resultado é o descolamento entre a realidade concreta (prática) e a realidade pretendida (teoria). Além disso, ao espalhar o ódio que ele entende ser justificado, o militante se afasta cada vez mais do bem que ele acredita perseguir, acentuando divergências e animosidades.

“O afastamento entre o eixo da construção teórica e o eixo da experiência real do indivíduo que está fazendo essa construção” é o que Olavo de Carvalho definia como paralaxe cognitiva, um “insulto à inteligência”. Se a pessoa admite e pratica uma comunicação hostil, como exigir da coletividade uma postura diversa da sua? É uma clara distorção de percepção: o agente do “ódio do bem” não se insere na própria realidade e, como se fosse um observador externo e árbitro do certo-e-errado, concebe modelos de sociedade e comportamento desvinculados de suas experiências, ações e circunstâncias. Mas cumpre reconhecer que o conceito e a crítica da paralaxe cognitiva são muito melhor aplicados a filósofos e suas filosofias do que a influenciadores e suas narrativas.

Karl Marx, por exemplo, além de se beneficiar da condição burguesa que tanto censurava, teorizou que a consciência histórica revolucionária pertencia, exclusivamente, aos trabalhadores assalariados oprimidos pelo capital. Contudo, na prática, ele próprio personificou essa consciência proletária, seguido por tantos outros intelectuais comunistas burgueses que usavam a classe trabalhadora como massa de manobra e a descartava como bucha de canhão. Portanto, além da contradição óbvia manifesta em seu estilo de vida, Marx ilustrava a paralaxe cognitiva à perfeição: construiu sua utopia para o proletariado como um observador dissociado da sua própria realidade burguesa.

Mutatis mutandis, adeptos do “ódio do bem” pregam um ambiente político tolerante e receptivo à pluralidade de ideias; mas nesse mundo teórico não haveria espaço para o comportamento agressivo e desrespeitoso deles mesmos. Será que estamos diante apenas de simples contradições, no pior estilo do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”? Parece mais plausível a constatação de que, na morte, Olavo de Carvalho comprovou um fenômeno que descreveu em vida. Nossos sentimentos a familiares, amigos e alunos.

Caio Coppolla é comentarista político e apresentador do Boletim Coppollana TV Jovem Pan News e na Rádio Jovem Pan

Revista Oeste