sábado, 15 de janeiro de 2022

'Haters: a política do ódio', por Dagomir Marquezi

 

Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock


Passamos a não somente odiar, como a amar o ódio. Odiar pode ser gostoso. Odiar vicia


“Em vários países e épocas, líderes de grupos que ficaram para trás, econômica e educacionalmente, ensinaram seus seguidores a culpar outras pessoas por todos os seus problemas — e a odiar essas outras pessoas.”
Thomas Sowell

Oque você mais odeia na vida? Cada um tem a sua lista particular. Ela vai de “odeio suco de maracujá” a “odeio mulher de cabelo curto”. Vai de “odeio filmes musicais” a “odeio carro de duas portas”. E, claro, chegamos ao “odeio petista” e ao “odeio fascista eleitor do Bolsonaro”.

A palavra “odiar” já teve mais peso. Era usada com parcimônia. Hoje se vulgarizou. Todo mundo odeia muitas coisas. Ninguém mais se choca com declarações de ódio. Ficou tão barato quanto dizer “eu AMO batata frita com mostarda!”. As pessoas colocam coraçõezinhos em seus posts para reforçar a mensagem e arranjam outra coisa para amar de paixão. Ou odiar.

Esses pequenos ódios fazem parte da natureza humana. Mas, quando o grande ódio chega à política, a situação muda. Porque determina o destino de todos. O exemplo clássico: Adolf Hitler se elegeu com uma plataforma de ódio aos judeus. Deu no que deu.

Existe o ódio entre xiitas e sunitas (que devasta o Oriente Médio), entre católicos e protestantes (que provocou tantas mortes na Irlanda do Norte), entre os hutus e os tútsis (que matou centenas de milhares em Ruanda), entre turcos e gregos. E assim caminha a humanidade.

O Brasil tinha no máximo uma rivalidade com os argentinos, que acabava em piada e se resolvia no futebol. Não chegava a ser ódio. Hoje, a bílis da raiva parece ter envenenado os brasileiros por dentro. E todo mundo espera de 2022, que deveria ser celebrado como uma “festa da democracia”, um festival de ressentimento sem fim. Tudo diz que teremos um ano muito mais amargo do que tudo que provamos até agora.

O ódio na política brasileira existe desde quando índios temiminós e tamoios trocavam flechadas antes da chegada de Pedro Álvares Cabral. Esse clima foi piorando, ou amenizando em ciclos. O último ciclo de relativa harmonia aconteceu no momento em que o regime militar passou o poder para os civis, em 1985. Uma “frente ampla” garantiu a promulgação da Constituição de 1988.

A teoria da projeção

A partir de 1989, o petismo cresceu no panorama político brasileiro, com o conceito de exclusão. Quem não está com eles está contra eles. Quem não cultuava Luiz Inácio Lula da Silva era um traidor das “classes trabalhadoras”. Quem não carregava a estrelinha vermelha do PT no peito era um “neoliberal lacaio do imperialismo”. Negros devem ter raiva de brancos, favelados devem odiar a polícia, homossexuais devem detestar os héteros, e assim por diante. Ninguém fez mais força do que os petistas para rachar o Brasil entre o “nós” e o “eles”.

A presença do petismo na vida política brasileira pode ser medida por “foras”: fora Itamar, fora Collor, fora FHC, fora Temer (que eles mesmos elegeram), fora qualquer um que Lula não aprove. Com Jair Bolsonaro, a coisa complicou. Bolsonaro, com seus muitos defeitos, despertou uma contracorrente política poderosa que ninguém pressentiu e desafiou a velha ordem. Agora, neoliberal era pouco. O nível de ofensa subiu para “fascista”, “negacionista”. E “genocida”. A fábrica de ódio não conseguiu achar nenhuma xingação mais grave que essa até agora.

O fundador da psicanálise, Sigmund Freud, definia o ódio como um estado do ego que deseja destruir a fonte de sua infelicidade. Odiamos nos outros o que tememos em nós mesmos. Para que a gente pareça “bom”, é preciso projetar nossa maldade naqueles de quem não gostamos. E automaticamente passamos a odiá-los. O que nos serviria de alívio.

O psicólogo Brad Reedy define que o antídoto do ódio é a compaixão. Compaixão pelos outros e por nós mesmos. “Se nós encontramos partes inaceitáveis de nós mesmos, tendemos a atacar outros de forma a nos defender contra a ameaça. Se estamos de bem com nós mesmos, podemos encarar o comportamento do outro com compaixão. De certa forma, esse é o princípio básico do cristianismo. Mas isso funciona mais em relações individuais. Em conflitos coletivos, a situação é mais complicada. E às vezes uma certa dose de ódio pode até ser positiva.

O psiquiatra Kurt R. Eissler, por exemplo, reconhece que pode haver um “ódio nobre”, que leva as pessoas a, por exemplo, derrubar um tirano. As pessoas não se livrariam de Benito Mussolini ou do Isis com compaixão. O problema é quando o ódio em si passa a ser o condutor de nossas atitudes. Passamos a não somente odiar, como a amar o ódio. Odiar pode ser gostoso. Odiar vicia.

O poder da indiferença

E odiar limita nossa visão da realidade. Digamos que uma reportagem informe que uma guerra nuclear pode estar para acabar com a humanidade inteira. É um fato profundo, que deveria nos fazer refletir sobre a vida como um todo e o sentido de nossa existência. Mas nos comentários você encontra algo como “espero que caia uma bomba no Bozo, já que a facada não deu resultado”. Ou “tomara que acertem a sede do STF e acabe com aquela corja”. Qualquer assunto acaba do mesmo jeito: num ódio rasteiro e destrutivo que se alimenta do próprio ódio.

O escritor romeno Elie Wiesel escreveu: “O contrário de amor não é ódio, é indiferença”

Todos se lembram do que aconteceu durante aquele espetáculo diário de degradação que foi a CPI do Renan Calheiros. Todos os dias, o cirquinho era apresentado pela imprensa militante em todos os detalhes, o que incluía entrevistas, torcida, palavras de incentivo. A velha imprensa cumpria seu papel, e perdia um pouco mais de sua rala credibilidade.

Os que detestavam a CPI e seus integrantes acabavam fazendo mais ou menos a mesma coisa. Ao criticar a comissão, divulgavam a cada dia as palavras grosseiras daqueles políticos repulsivos e desonestos. Ao odiar a CPI diariamente nas redes sociais, davam palco a ela. Eu mesmo caí nessa armadilha. Nunca mais.

O escritor romeno Elie Wiesel, que viu sua família morrer no campo de concentração nazista de Auschwitz-Birkenau, escreveu: “O contrário de amor não é ódio, é indiferença. O contrário de arte não é feiura, é indiferença. O contrário de fé não é heresia, é indiferença. E o contrário de vida não é morte, é indiferença”.

Talvez Wiesel tenha mostrado aí um caminho a seguir nesses tempos tão tumultuados. O ódio não precisa necessariamente ser combatido com mais ódio, mas com indiferença. Não quero saber quem os petistas querem que morra. Simplesmente bloqueio. Não assisto ao Jornal Nacional. Não leio a Folha de S.Paulo.

Já sabemos quem quer que o Brasil volte cinco casas e se torne uma ditadura estilo chavista. Na minha opinião, quem for contra eles deveria ser cada vez mais indiferente aos Zés de Abreus da vida. (Augusto Nunes já disse tudo o que precisava ser dito sobre esse infeliz na edição anterior de Oeste.)

Precisamos seguir novos caminhos, construir alternativas, criar novas utopias. Superar essas forças de atraso, privilégio e corrupção olhando para a frente, e não para seus olhos injetados de sangue. Estamos há mais de 30 anos girando ao redor do umbigo de Lula e seus seguidores. Eles podem cultivar seus campos de ódio à vontade. Eu me nego a continuar comendo seus frutos envenenados.

Leia também “O cafajeste”

Revistas Oeste