“Padilha me ligou falando: ‘Yunes, olha, eu poderia pedir para que uma pessoa deixasse um documento em seu escritório? Depois, outra pessoa vai pegar’. Eu disse que podia, porque tenho uma relação de partido e convivência política com ele.” (Sergio Dutti/VEJA)
A pretexto de manifestar repúdio à hipocrisia, determinados personagens costumam render homenagens à franqueza. Nesse tipo de comportamento se expõe com nitidez quanto a transgressão travestida de retidão reside arraigada na raiz da transgressão.
Dias atrás, o chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, pôs-se a ensinar fisiologismo a diretores da Caixa Econômica Federal e o líder do governo, senador Romero Jucá, tentou ampliar à sorrelfa o alcance do foro especial de Justiça, para depois advogá-lo na forma de orgia generalizada. Fizeram-no nas barbas do Palácio do Planalto, sob o silêncio indulgente da grei brasiliense – a residente nos intramuros do poder -, cuja sensibilidade para o que se passa fora de sua vizinhança se encontra enfraquecida por obra dos próprios excessos.
Afetar indiferença ali é sinônimo de inclusão na roda dos peritos da política. Estranheza é coisa de amador. Ou pior, de hipócrita. E, como sabemos, excelências experimentadas têm horror à dissimulação. Primam pela sinceridade em seus atos e palavras inconvenientes tornadas aceitáveis pelo uso do critério que mede as querências pela mesma régua das “poderências”. Fazem-se de cegos e surdos à evidência de que o querer é regido pelo arbítrio do desejo e o poder, limitado às fronteiras da legalidade, da decência, entre outros atributos.
De quanto mais poder é detentora a autoridade, mais cuidado a democracia aconselha que tenha com o uso da força inerente à função. Isso no plano ideal. No terreno real ocorre justamente o oposto. Não de hoje.
Inesquecível, por didática, a participação de Paulo César Farias, o decano e ao mesmo tempo pioneiro da carreira criminosa dos tesoureiros, na CPI que derrubaria seu chefe Fernando Collor 25 anos atrás. Com a cara lisa peculiar ao tipo, consignou ante deputados e senadores: “Somos todos hipócritas”. Falava em defesa do uso do caixa dois nas campanhas eleitorais como parte dos costumes correntes e contra os que tentavam condená-lo em foro político. Não escaparia, mas naquele momento obteve a concordância de um plenário emudecido e nivelado por baixo.
PC Farias foi preso e, mais tarde, assassinado. A ele sobrevive a tese segundo a qual hipócritas são todos aqueles que defendem a observância dos bons costumes nos aspectos da vida em geral, particularmente no ato de governar. Anos depois João Santana, o marqueteiro, viria a repetir o dístico: “É preciso rasgar o véu da hipocrisia nas relações político-eleitorais no Brasil”, em depoimento à Justiça, já na condição de preso pela Operação Lava Jato.
Baseado nesse catecismo, o então presidente Lula qualificou como “hipócritas” as restrições ao uso da máquina pública para fins eleitorais, os protestos a determinados atos do Congresso, as críticas ao modo petista de se locupletar. Profissionais do cinismo não rendem homenagens sinceras à hipocrisia. Apenas desqualificam os críticos na tentativa de vestir a trapaça em figurino de lisura.