quinta-feira, 30 de março de 2017

"Brasil e o lobo", por Fernão Lara Mesquita

O Estado de São Paulo

Até da China logo se viu que aquele show diário brasileiro não é motivo para sair logo atirando


Nem a imprensa nem a polícia, sozinhas. O problema é quando as duas deixam de lado a função de controlar uma à outra para caírem numa espiral de mútua manipulação que anaboliza perigosamente a força de ambas e só pode resultar em catástrofes como a da “Carne Fraca”.
Aquilo foi um filme acelerado dos últimos três anos. Querer proibir que se tirem do episódio as conclusões que ele aponta é desperdiçar mais uma oportunidade – talvez a última – de sairmos da rota de desastre. Um caso de fraude a contrato com a merenda escolar, outro de suspeita de utilização de carne além do prazo de validade na fabricação de embutidos e mais dois ou três indícios de pecadilhos menores envolvendo dosagens de conservantes e de componentes empregados em receitas de carnes industrialmente processadas. Nem a Polícia Federal nem a imprensa, sozinhas, conseguiriam, com material tão fraco, destruir o último polo de excelência que sobrevivia no País e pôr 6 milhões de famílias na rua da amargura. Mas juntas...
Tem sido um processo. A imprensa foi sinalizando “ao mercado” que o simples carimbo do “teve acesso a” passava a ser suficiente para legitimar a publicação sem nenhuma apuração independente de material vazado por partes interessadas. Com o tempo passou-se a disputar esses falsos “furos jornalísticos” com a superexposição do material obtido. Policiais e promotores obscuros passaram a ter, de repente, a exposição que não se dá nem a presidentes nos momentos de crise nacional.
O resultado é um clássico da literatura universal. Pode-se conjecturar quanto de amor à justiça, de vaidade, de simples leviandade ou de intenções criminosas tem havido por trás de cada um desses episódios. Mas negar que as coisas evoluíram para um esquema fácil demais de delação + grampo telefônico + exposição de pedaços de verdade, resultando em generalizações temerárias, injustiças, insegurança jurídica, paralisia econômica e destruição maciça de riqueza; negar que essa arma está ao alcance de todo e qualquer bandido da política e tem sido usada para pôr a verdade a serviço da mentira e a justiça a serviço do crime é pelo menos tão desonesto quanto afirmar que é sempre só a isso que se resume a Lava Jato.
Há duas disputas sobrepostas nesta encruzilhada da vida nacional. Aquela com que mais se procura entreter o público é a da corrida pela herança formal da terra arrasada em que o País se vai transformando e anima a novela da corte que hipnotiza a imprensa. Essa disputa, até segunda ordem, ainda se resolve no voto, que, não por acaso, é a bola da vez. A outra, mais subterrânea e essencial, regida pela aritmética, é a que, mais cedo ou mais tarde, terá necessariamente de desaguar numa profunda revisão da repartição do PIB entre a casta que se apropriou do Estado e detém os privilégios ilegítimos que se especializou em contrabandear para dentro da ordem legal e a multidão dos trabalhadores da economia privada sucessivamente saqueada para sustentá-los.
Essa disputa obedece a alinhamentos que transcendem os que regem o discurso das confrarias envolvidas na primeira e faz com que, nos bastidores, manobrem e votem na mais perfeita ordem unida do mais reacionário “pastor” à mais carbonária das “passionárias” do Congresso, sempre a favor do privilégio (dos 86% de funcionários excluídos da reforma da Previdência, por exemplo) e contra o povo miserável, que pagará mais impostos por isso.
Encurralada pelo esgotamento do organismo hospedeiro que colonizou, a “privilegiatura” brasileira, assim como todas que a precederam na História, vai se arrastar até onde lhe permitirmos que se arraste. Mas a extensão dessa sobrevida, indefensável por qualquer tipo de argumento racional, dependerá essencialmente de manter o eleitorado confundindo essas duas lutas uma com a outra.
A polarização do debate nacional pelo “patrulhamento ideológico” e o medo dos “linchamentos morais” promovidos a pretexto de “defesa da Operação Lava Jato” é hoje o principal artifício a que se tem recorrido para estabelecer e manter essa confusão.
Mas fatos são fatos. É em sintonia perfeitamente fina com a alternância das figuras de turno no poder, a evolução do calendário eleitoral e, mais especialmente, o cronograma das reformas que se vão sucedendo os personagens visados nas delações. Marcelo Odebrecht exerce hoje um poder maior que o que jamais sonhou, na sua megalomania, poder comprar com dinheiro. Qualquer nome que meramente pronuncie está condenado a arder eternamente no mármore do inferno. O movimento redentor que começou com o rigor de investigação e as sentenças precisas e individualizadas do “mensalão” e mobilizou o País inteiro a ter esperança iguala hoje, sob a indiferença geral, todos os políticos ao Lula da hipercorrupção pelo poder ou aos cunhas e cabrais da hipercorrupção pelo dinheiro, todos os empresários que doaram para campanhas ao nosso multinacional Midas pelo avesso e, por último e não por menos, toda a indústria brasileira de proteína animal a uns tantos picaretas e fiscais corruptos pendurados nela.
É o “meio” que tem feito a “condenação” onde quer que se o aplique.
Capturar e punir ladrões é essencial. Mas as culpas são de quem as tem. Todas as democracias do mundo convivem com o financiamento privado de campanhas porque a alternativa é óbvia e ululantemente muito pior. O STF lavrou sentença provando que é fácil diferenciar os raupps do trigo e até Dallagnol já discursou que não importa o “número” do caixa, todos podem incluir ou não corrupção, que é sempre fácil de identificar e punir. Mas a conclusão dessas premissas ninguém afirma em voz alta porque defender financiamento privado e individualização de julgamentos seria “renegar a Lava Jato”.
E tome lista fechada!
O mundo se assustou com o show diário a que nos acostumamos, mas em poucos dias já dava para ver até da China que não é o caso de pegar a arma e sair atirando cada vez que se grita “Lobo!” por aqui. Não seria hora de a gente aprender também?