Prisões arbitrárias do 8 de janeiro abriram feridas difíceis de cicatrizar nos filhos dos manifestantes
Em julho do ano passado, viralizou nas redes sociais um vídeo no qual os dois filhos menores da cabeleireira Débora dos Santos, de 39 anos, presa pelo 8 de janeiro, imploram pela soltura da mãe. A paulista de Paulínia ficou conhecida por escrever, com batom, a frase “perdeu mané” na estátua A Justiça, em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF). Nas imagens, Caio e Rafael dizem sentir saudades da mãe e se dirigem ao ministro Alexandre de Moraes. O juiz do STF não se comoveu com o apelo. O recuo do magistrado só veio quase um ano depois da gravação, e em virtude da pressão popular e de veículos de comunicação que não pertencem à chamada grande mídia.
Em meio aos mais de mil presos no protesto na Praça dos Três Poderes, em Brasília, há inúmeros Rafaéis e Caios ainda pouco conhecidos pelos brasileiros. São órfãos de pais vivos, que enfrentam calados um drama pessoal. As decisões do STF, sobretudo as condenações exageradas que ultrapassam dez anos de cadeia, abriram muitas feridas que dificilmente cicatrizarão. Apesar de todo esse cenário desolador, os ministros do STF não indicam apoio sequer a uma redução das penas.
Famílias dilaceradas
Com apenas 5 anos, o filho do gerente de negócios Nelson Junior, de 33, foi alijado da vida de uma criança normal para ter de lidar com os efeitos do brusco rompimento familiar. Durante os 24 meses em que o pai ficou preso por causa da manifestação, o menino desenvolveu uma série de problemas emocionais. Ele, que tinha uma personalidade tranquila, passou a ter crises de ansiedade e choros constantes sempre que lembrava do pai.
O rendimento escolar da criança e o convívio social com os colegas foram afetados. O menino passou a ter dificuldade de aprendizagem. Com a saúde emocional debilitada, desenvolveu uma dermatite vulgar no pescoço — resumidamente, a doença é uma reação da pele a situações de estresse e ansiedade constantes. Os sintomas mais comuns são coceira, vermelhidão, erupções cutâneas e pele ressecada.
Na semana passada, na esteira da comoção do caso Débora, Moraes deu a “meia liberdade” a Junior, que se reencontrou com os parentes. Agora com tornozeleira eletrônica e uma série de medidas restritivas, o homem aguarda o julgamento do tribunal, que ainda não ocorreu. Além do abalo emocional, a família passou a ter dificuldades financeiras depois da prisão de Junior. No tempo em que ele ficou detido, Moraes negou todos os pedidos de liberdade de seus advogados. Conforme a defesa, Junior hoje passa a maior parte do tempo em casa, visto que acabou demitido, enquanto a mulher sai para ganhar dinheiro e pagar as dívidas que se acumularam.
A situação é ainda mais dramática para o filho de 8 anos de Débora Caiado, 43, presa desde 6 de junho do ano passado. O STF a condenou a 14 anos de cadeia. A mulher se encontra, atualmente, na Penitenciária Feminina de Santana (SP). Segundo o pai do menino, Alexandre, a vida da criança “virou de ponta-cabeça”. “Nem ele entende a situação na qual alguém que não fez nada precisa ficar preso”, disse. O menino passou a contar com a ajuda de um psicólogo e uma psicopedagoga para auxiliá-lo na escola, visto que está em fase de alfabetização.
Além do surgimento de perturbações emocionais, como ansiedade, o pai informou que a criança tem CID A09, nomenclatura médica que indica problemas como diarreias e inflamação no estômago e no intestino.
“Era uma criança doce, sem maldade nenhuma”, disse Alexandre. “Só fazia alegria tanto em casa como na escola. Hoje, é triste e fica ansioso para a mãe voltar, para poder dormir com ela.” O homem lamenta o fato de sua mulher não ter sido contemplada com a liberdade por ser mãe de uma criança menor — direito assegurado pelo próprio tribunal a traficantes e até mesmo a Adriana Anselmo, ex-primeira-dama do Estado do Rio de Janeiro, presa na Lava Jato.
“A vida do meu filho tem sido muito difícil”, desabafou o pai. “Temos medo de que ele possa levar essa dor para o resto da vida. O doutor Augusto Cury já dizia que situações assim podem causar muitos traumas na criança.”
O rompimento de laços familiares provocado pelo STF atingiu inclusive filhos mais velhos, como Victor Manoel, de 21 anos, filho da faxineira Edinéia Paes da Silva dos Santos, de 40, condenada a passar os próximos 16 anos no cárcere. Hoje, ela se encontra na Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu (SP). Segundo Simone, tia de Manoel, o jovem se trata com psicólogo. “Está muito revoltado”, contou a irmã de Edinéia. “Ele fica calado e não fala muito.” A tia disse que o rapaz ainda não decidiu fazer alguma faculdade, pela situação da mãe. Desde que a mãe foi detida, ele passou a trabalhar em um posto de gasolina para ajudar o pai a pagar as despesas domésticas. Assim como a maioria dos manifestantes, a mulher acreditava estar indo a um ato pacífico na capital federal.
As irmãs Késia e Luíza Cunha, filhas do empresário Cleriston da Cunha, o Clezão, também tiveram as vidas afetadas pela tinta das canetas dos ministros do STF. Antes da morte do pai na Papuda, em 2023, vítima de um mal súbito e pela falta de atendimento médico solicitado durante meses a Moraes, as jovens vinham se preparando para cursar medicina. Luíza queria ser cirurgiã plástica, enquanto a irmã almejava virar cardiologista. A tragédia com o pai interrompeu o sonho das duas. Desde o falecimento de Clezão, as irmãs passaram a ajudar a mãe, Jane, a cuidar da casa e dos negócios da família. Hoje, depois de recolherem alguns cacos da vida dilacerada pela Justiça, ambas fazem odontologia. Luíza conseguiu pagar a própria faculdade graças ao trabalho de assessora que conseguiu no gabinete da senadora Damares Alves (Republicanos-DF) neste ano.
Volta à normalidade
A instauração da Comissão da Anistia, em 2002, criou a freguesia da “Bolsa Ditadura”. Há 23 anos, mais de 80 mil pedidos de reconhecimento da condição de anistiado passaram por ali. A maioria deles busca algum tipo de reparo econômico.
Nos últimos 20 anos, os pagadores de impostos custearam R$ 7 bilhões em benefícios. Em alguns casos, a quantia depositada na conta beira os milhões de reais.8 de janeiro Luiz Inácio Lula da Silva Anistia Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes Jair Bolsonaro 2 comentários Assine ou cadastre gratuitamente para comentar Os manifestantes do 8 de janeiro não querem dinheiro. Desejam apenas acabar com o sofrimento e retornar para perto da família. Também pedem a volta à normalidade em um Brasil democrático
Cristyan Costa - Revista Oeste