A punição exagerada de manifestantes do 8 de janeiro não vai tirar as dúvidas sobre o sistema eleitoral
O presidente do Supremo, ministro Barroso, tem expressado a crença de que a Corte é querida, por sua defesa da democracia. Desde o início do governo Bolsonaro, o Supremo vem defendendo a democracia, graças à criação do “Inquérito do Fim do Mundo”, como o rotulou o ministro Marco Aurélio Mello, expresidente da Casa, já aposentado. Nem precisou de Ministério Público, como exige a Constituição. Foi um ato de legítima defesa contra os que, nas redes sociais, abusando da garantia constitucional pétrea de livre manifestação do pensamento, ameaçavam com palavras os ministros do Supremo.
Os ofendidos, então, trataram de investigar, denunciar, processar, condenar essas vozes, a despeito da proibição de censura estabelecida na Constituição da qual ministros do Supremo são guardiões. A defesa da democracia deixou-os tão queridos que agora a FAB, além de defender o espaço aéreo brasileiro, passou a garantir o espaço dos ministros do Supremo sempre que quiserem viajar pelos ares brasileiros. Já me deu saudade de rever a bordo de voos regulares os ministros mais antigos, como Gilmar e Fux, que eu encontrava com frequência. Ficou até proibido divulgar a lista de passageiros. Apesar de pessoas públicas, servidores do público, o público pagante não pode saber nem sequer aonde vão. Mas a Corte é muito querida.
Fica ainda mais querida quando o decano, ministro Gilmar, em entrevista, diz que não faz sentido a Câmara discutir anistia. É bom lembrar que a Câmara é outro Poder. Poder político. E os Poderes, diz a Constituição, devem ser harmônicos. Os deputados discutem anistia, e o decano do Supremo afirma que isso não faz sentido. No domingo da manifestação por anistia na Avenida Paulista, o Evangelho escrito por João mostra uma cena de anistia por parte de Jesus, de uma adúltera recém-flagrada. Pela Lei Mosaica, ela deveria ser apedrejada; os fariseus provocaram Jesus, perguntando o que fazer com ela. Jesus respondeu: “Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra”. Os circunstantes, então, foram sumindo. “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?”, perguntou Jesus, que havia ficado sozinho com a mulher. “Ninguém, Senhor”, ela respondeu. E Jesus: “Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar”.
O ministro Barroso já disse que não dá para não punir, porque os insatisfeitos com resultado de eleição tornarão a pecar contra o patrimônio público e as instituições. Como na Lei Mosaica: olho por olho, dente por dente. Essa posição do presidente do Supremo Tribunal ainda está no Velho Testamento; não entrou na Era Cristã, que recebeu um novo mandamento, aplicado por Jesus à adúltera. Escribas e fariseus achavam que ela deveria ser apedrejada até a morte. Mas descobriram dentro de si que não tinham moral para atirar a primeira pedra. Aqui, se a apuração da eleição fosse bem compreendida por cada eleitor, se houvesse um instrumento que garantisse ao eleitor que seu voto está computado certo; se, havendo quase empate entre candidatos, fosse possível fazer auditoria, como tentou o PSDB na reeleição de Dilma, não haveria a dúvida, a insatisfação, a catarse. A ameaça da Lei de Moisés não baniu o adultério; a punição exagerada de manifestantes do 8 de janeiro não vai tirar as dúvidas sobre o sistema eleitoral.
Barroso defende punições exemplares, mas críticos dizem que repressão não elimina dúvidas sobre o sistema eleitoral brasileiro | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
A decisiva atualidade do Evangelho daquele domingo é que hoje os que já tiveram pecado — e foram perdoados pela anistia de 1979 — são os que estão atirando a primeira pedra quando gritam “sem anistia!”.
Hugo Motta Bíblia 8 de janeiro Luís Roberto Barroso
Supremo Tribunal Federal (STF)
1 comentário
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Farisaísmo, hipocrisia. Mas tudo é amor. O Supremo é popular porque
garante a democracia. A prisão para ensinar os antidemocratas é mais
didática que uma anistia que vai induzi-los a pecar de novo, armados
de perigosos batons e de Bíblias que ficam pregando maus exemplos
de Jesus com a pecadora.
Alexandre Garcia - Revista Oeste