Aos 81 anos, Agnes Hirschi franze por um instante os olhos profundamente azuis quando relembra em detalhes os dois meses que, há 74 anos, viveu dentro de um abrigo antibombas escuro em Budapeste. É o clímax de uma narrativa de sofrimento e afeto durante a Segunda Guerra Mundial , quando ela, aos 6 anos, e sua mãe, Magda, buscaram o diplomata suíço Carl Lutz para se protegerem da perseguição aos judeus.
Agnes, que trabalhou como jornalista por mais de 20 anos em Berna, na Suíça, se dedica a encontrar personagens dessa história e honrar o nome de Lutz, que liderou a maior operação de salvamento no Holocausto, de estimadas 60 mil pessoas. Numa reviravolta, ele ainda virou seu segundo pai ao se casar com Magda. Agnes esteve no Rio e volta em 2020 para uma mostra sobre Lutz na Casa Stefan Zweig , em Petrópolis.
Como a senhora gosta de contar a sua história?
Você quer ouvir primeiro sobre a história da minha família!? Bom... Meus pais eram húngaros e queriam emigrar em 1938, porque se sentia que viriam uma guerra e tempos difíceis para os judeus. Meu pai mandou minha mãe a Londres, e eu nasci lá. Depois, eles resolveram voltar, e os primeiros anos em Budapeste foram bem normais, já que a Hungria foi o último país a ser invadido pelos nazistas, em março de 1944. A partir daí, a situação se tornou muito séria para os judeus: tinham que usar a estrela amarela, não podiam sair de casa e tinham bens confiscados. Carl Lutz chegou a Budapeste em janeiro de 1942 e era encarregado do Departamento de Interesses Externos da legação suíça, representando os interesses de 12 países em guerra na Hungria, incluindo EUA e Reino Unido, este responsável pela emigração à Palestina durante o seu mandato lá. Como eu era britânica, em 1944 minha mãe o procurou.
Infelizmente, não.
Ah, deveria visitar. Bom, eu tinha só 6 anos, mas me lembro muito bem. No começo, a vida para nós, lá em cima, era muito protegida. Nem mesmo precisávamos da carta de proteção. Mas, entre outubro e novembro, a situação se tornou muito séria, e os nazistas húngaros chegaram ao poder. A primeira mulher de Carl Lutz foi ao campo várias vezes e comprou muita comida: lentilhas, batatas e outros. Os bombardeios ficaram muito graves. Buda, onde estávamos, era pior do que Peste — e ficou completamente em ruínas. Começamos a ir de tempos em tempos ao abrigo antibombas subterrâneo, até que depois do Natal ficamos lá por dois meses seguidos. Duas fotos colocadas no chão eram a minha cama. Havia 30 de nós: os funcionários da casa e alguns britânicos cujas casas haviam sido bombardeadas. No começo, tínhamos comida suficiente, mas a guerra durou mais do que o previsto e, no fim, havia só sopas. Era um abrigo muito bom, mas muito escuro. Primeiro tínhamos lâmpadas a óleo; depois, velas; até que começamos a usá-las por apenas duas horas ao dia. Até hoje odeio quartos escuros e porões, e sempre vou para lugares ensolarados. Um dia 20 bombas atingiram a linda casa acima de nós e a derrubaram.
Tinha consciência do que acontecia?
Minha mãe me protegeu muito bem, e eu tinha dois amigos, os filhos do chofer. Os adultos ficavam me contando histórias, e assim não era tão terrível. Era apenas a escuridão e o som das bombas. Mas eu não sou uma pessoa assustada, de qualquer jeito.
Nós aprendemos a não sermos assustados, não?
Acho que sim. Eu não sou assustada, de maneira nenhuma, até hoje. Quando os soldados russos vieram em fevereiro seguinte, diziam “tchasy, tchasy”, porque queriam os relógios suíços. Minha mãe me pôs embaixo da cama, porque eles eram muito ásperos, tinham barbas e pareciam violentos. Pensou que eu me assustaria. Os soldados atiraram embaixo da cama, mas eu não fui atingida. Você pode imaginar o que minha mãe passou até saber que eu sairia dali. Precisava-se de um anjo protetor para escapar da morte na guerra o tempo todo.
Como era a personalidade de Lutz? E sua relação com ele?
Era um homem muito bom. Queria viver em harmonia e sempre trazia presentes, flores e chocolates... para minha mãe e para sua mulher. Para mim, deu chocolates até no abrigo, onde celebrei meu sétimo aniversário em janeiro, porque os tinha guardado para a ocasião. Apaixonou-se pela minha mãe e teve que deixar a Hungria em 1945. Então eles concordaram que ambos tinham que se divorciar para que depois ele voltasse. Voltou em setembro de 1949. Os dois casaram em Budapeste, e fui viver com eles na Suíça.
Lembra do trabalho de Lutz para salvar judeus?
Eu só sabia que ele fazia o bem para judeus, porque eles vinham o tempo todo. Havia a Casa de Vidro, que podíamos ver do nosso apartamento: em certo ponto, Lutz viu que, com tantas pessoas que precisavam de ajuda, seu escritório não seria grande o suficiente, e fez de uma linda casa, toda construída com vidros coloridos por dentro, o centro operacional de organizações judaicas. As autoridades suíças não gostaram nada disso. Eu via as pessoas pedindo ajuda, e, quando os nazistas invadiram a Hungria, centenas delas procuraram Lutz. Era sua última esperança de emigrar à Palestina. Lutz não havia sido enviado a Budapeste para salvar judeus, e por isso foi culpado pelas suas ações depois na Suíça.
Falou com [o oficial das SS Adolf] Eichmann e conseguiu 7,8 mil permissões de emigração à Palestina. As cartas diziam que estavam sob proteção suíça até que pudessem emigrar à Palestina. Mas era apenas uma ficção, porque as portas já estavam fechadas para os judeus. Lutz interpretou cada permissão não como individual, mas sim familiar. E assim salvou muito, muito mais pessoas. Acreditamos que tenham sido no mínimo 50 mil, embora seja impossível dizer o número preciso, pois organizações judaicas depois forjaram milhares de falsas cartas.
Por que acha que ele não ficou tão conhecido após a guerra?
Na Suíça, não se celebram muito heróis, e há poucos considerados assim. Quando ele voltou, as pessoas não tinham ideia do que havia sido a guerra e quão terríveis haviam sido aqueles tempos. E depois houve a Guerra Fria, tempos difíceis em que não havia muito interesse em discutir toda aquela história. Houve até uma investigação sobre aquele tempo, mas nada veio à tona contra Lutz, embora alguns o acusassem de ter ultrapassado sua autoridade. Ele tinha o poder para fazer aquelas pessoas emigrarem à Palestina, mas não o de aumentar o número delas em cinco vezes.
Falava-se sobre este período na sua casa após a guerra?
Todos os dias. Lutz não conseguia superar, precisava falar sobre o que acontecera e encontrar pessoas que talvez soubessem de algo. Não conseguia ficar em paz. Já eu queria ser jovem e aproveitar a minha vida. Por muito tempo, ele não foi reconhecido na Suíça, embora já nomeado Justo entre as Nações pelo Yad Vashem (Memorial do Holocausto em Jerusalém). Para ele, ser honrado pelo próprio país teria sido muito importante. Em 1975, aos 80 anos, ele se sentia muito frustrado. Quando morreu, me pediu que contasse às pessoas o que acontecera em Budapeste. Ele guardou centenas de fotos e documentos. E estou muito feliz de estar aqui. Sou coautora de um livro com 36 entrevistas de resgatados, mas nenhum da América do Sul.
O que a faz continuar com tanta energia até hoje?
Eu prometi ao meu padrasto que contaria o que aconteceu em Budapeste, e ele ficaria contente se soubesse o que faço. Muitos sobreviventes já têm mais de 90 anos e ainda podem contar suas histórias muito bem. Eu não sou tanto uma sobrevivente quanto outros, que passaram por problemas maiores. Mas sou forte.
Heloísa Traiano, O Globo