domingo, 8 de julho de 2018

"Pobres ingleses: reprimidos por torcer pelo time e usar bandeira", por Vilma Gryzinski

Pintura de guerra: a repressão da esquerda aos torcedores é mundial, mas na Inglaterra parece coisa de louco (Scott Heppell/AP)

Quem vê, na superfície, torcedores comemorando um gol da seleção inglesa, agitando a bandeira com a cruz de São Jorge e cantando “de volta para casa”, imagina um país normal, tomado unanimemente pelo furor tribal que acomete as nações de quatro em quatro anos com o mais emotivo dos esportes.
Puro engano. Torcer pela seleção nacional – inglesa, não britânica, já chegaremos a isso – é visto com maus olhos pelas elites. Mesmo que apreciem o esporte, no máximo dirigem um olhar superiormente divertido às massas entusiasmadas.
Às vezes, nem isso. Corre que primeira-ministra Theresa May, firme apreciadora das emoções do críquete, precisou ser informada pelos assessores de imagem sobre o que dizer diante das inesperadas vitórias dos Três Leões, o nome da seleção.
“Voltando para casa”, é a resposta padrão e o grito da torcida. Obviamente, porque as regras do futebol nasceram num pub chamado Freemasons Tavern, em 1863, com o objetivo de diferenciar o jogo do pé na bola do rúgbi, outro dos muitos esporte gerados ou regulamentados no reino.
A taverna dos maçons mudou de lugar, mas continua em Covent Garden, servindo comida de pub um pouco aperfeiçoada pelo ambiente agora chique.
O primeiro jogo oficial, entre times da Inglaterra e da Escócia, terminou em zero a zero e um bocado de animosidade. A maioria dos jogadores da Escócia era formada por ingleses, um erro que Robert Gardner, goleiro e promotor da partida jogada em 1887, não deixou se repetir.
Desde então, mesmo escoceses que não são separatistas torcem ardentemente pela derrota da Inglaterra. A rivalidade no futebol mistura-se à anexação, na prática, da Escócia ao reino chamado de unido, mas na realidade tendo a Inglaterra como potência dominante. A bronca tem o mesmo gosto mais de 300 anos depois.

JINGOÍSMO PURO

Mas os maiores integrantes da “torcida contra” são ingleses mesmo, geralmente de tendência esquerdista, tal como identificada pelos seus porta-vozes, o Guardian e o Independent. Este chegou a dar um artigo inteiro explicando a “psicologia por trás de nosso comportamento durante os jogos da Inglaterra na Copa”.
Quem acha que precisa explicar como funciona a “identidade social” num jogo da Copa e o processo de “desindividualização” ocorrente na hora dos gritos, urros e outras reações comuns é porque vê algo de esquisito naquela coisa toda.
De forma mais ampla, a esquerda abominada qualquer manifestação de nacionalismo, seja o britânico ou, pior ainda, o inglês. Cobrir casas ou sacadas de apartamentos com a bandeira branca com a cruz vermelha de São Jorge, um santo tão poderoso, é considerado nesses meios praticamente um ato político perverso.
Ficou famoso o tuíte de uma deputada do Partido Trabalhista, Emily Thornberry, mostrando apenas uma foto da cidade de Rochester: um modesto sobradinho geminado com uma van branca estacionada e a bandeira de São Jorge.
A intenção de ridicularizar as classes trabalhadoras, justamente por uma representante do partido que leva seu nome, obrigou a deputada esnobe a renunciar ao posto de ministra da Justiça do governo paralelo – o que não está no poder, mas tem todos os eventuais integrantes já funcionando.
O dono do sobradinho, Dan Ware – branco, cabelo raspado, camiseta regata, tatuagens e até um terço no pescoço – quadruplicou o número de bandeiras para a Copa.
Emily Thornberry voltou para o “gabinete-sombra”, sob a liderança de Jeremy Corbyn. Mistura de trotsquista com stalinista, Corbyn já comparou simpaticamente o bom momento do futebol inglês em 1996 e as manchetes triunfais dos tabloides com “a forma como Hitler usava os esportes para fortalecer o nazismo”.
A moção parlamentar lamentava o “nacionalismo e jingoísmo” – termo este inventado justamente na Grã-Bretanha, na época posterior à Guerra da Crimeia, quando a animosidade contra a Rússia imperial ainda estava quente.
A musiquinha cantada em pubs pela nacionalista classe operária dizia que os britânicos não queriam ir de novo à guerra, mas, se fossem, “em nome de Jingo/ Temos os navios, temos os homens e temos o dinheiro também/ Já lutamos antes contra o Urso”.
“Jingo” era um substituto para o santo nome de Jesus, que não podia ser pronunciado nesses ambientes.
O ódio das esquerdas ao nacionalismo – incluindo no pacote bandeira, hino e futebol – aumentou gravemente depois do Brexit. No sentido oposto, os brexistas ficaram mais orgulhosos ainda de pertencer a um país que disse “não” às forças supranacionais representadas pela União Europeia.

PÉS, MÃOS E TIROS

O país, no caso, é a Inglaterra. Com 53 dos 66 milhões de habitantes do Reino Unido, En-ge-land, como gritam os torcedores, escandindo as sílabas, teve o voto determinante no plebiscito.
Isso aumenta ainda mais a raiva das outras unidades. Escócia, como já dissemos, País de Gales e Irlanda do Norte – fora a Irlanda independente -, todos torcem contra os Três Leões (a bandeira com os nobres felinos é usada em batalha desde o século 12, cada um representando uma casa real que chegou ao trono, por berço ou casamento).
A torcida maior é na Irlanda católica, historicamente reprimida pela Coroa inglesa. Depois de declarar a independência à revelia, em 1920, os atos de violência proliferaram, em ambos os lados.
No dia 21 de novembro de 1920, um domingo, o Exército Republicano Irlandês mandou matar os integrantes de um grupo de ingleses que funcionava como órgão de inteligência na ilha rebelada. Catorze deles foram fuzilados por assassinados enviados às suas casas.
Nesse ambiente de altíssima volatilidade, forças de segurança enviadas para controlar a massa num jogo de futebol gaélico (variante que usa pés e mãos) abriram fogo contra a multidão, provavelmente acreditando que seriam atacadas.
Morreram treze pessoas, entre homens, mulheres e crianças. Esse dia foi o Bloody
Sunday, o domingo sangrento, original.
NOITE FELIZ
Nenhum outro esporte provoca paixões primais como o futebol, que de muitas maneiras é a prolongação da guerra por outros meios, um pouco menos sanguinolentos.
Alguém imagina um jogador de croquet (não confundir com críquete) sentando o taco na cabeça de outro? Um jogo de tênis que termina em pancadaria generalizada na torcida? Juízes de competição de remo sendo retirados, no clássico clichê, sob proteção policial?
Como criadores do jogo de futebol tal como existe hoje, os ingleses também são altamente especializados no quebra-quebra que deu fama sinistra aos torcedores. Entre eles também vicejou uma espécie com nome próprio, os hooligans.
Também foram ingleses – e demais nacionalidades do reino – que dividiram o papel de protagonistas com alemães na mais comovente data envolvendo o futebol, a trégua de Natal de 1914.
A história é tão maravilhosa que muitos acreditam ser apócrifa. Mas aconteceu de fato, embora não na versão edulcorada do comercial natalino da rede de lojas de departamento John Lewis.
Mergulhados na lama e no frio das trincheiras de uma guerra que todos os lados considerava que acabaria “em um mês”, soldados ingleses e alemães desafiaram diretamente as ordens de seus oficiais e confraternizaram por um único dia sem o morticínio hediondo que traumatizou a Europa.
A ideia da trégua já estava correndo desde 18 de dezembro, provocando a proibição específica do comando britânico. A coisa começou com os alemães, que haviam recebido árvores de Natal e rações especiais para levantar o moral da tropa.
“Ao longo de todas linha, os alemães começaram a agir de forma binariamente pacífica”, escreveu o historiador Gerard DeGroot. “Os canhões silenciaram. Velas e lanternas acesas desafiavam os franco-atiradores britânicos. Tarde da noite na véspera de Natal, ecoou na terra de ninguém os alemães cantando Stille Nacht.”
Depois, vieram os gritos: “Amanhã é Natal. Se vocês não lutarem, nós também não lutaremos.”
Um capitão britânico, S. I. Stockwell, registrou que pediu um encontro com o comandante alemão no lado oposto. Cumprimentou-o e avisou que tinha ordens para não confraternizar com o inimigo. O alemão respondeu que suas ordens eram idênticas, mas seu pessoal preferia fazer uma trégua informal. E ainda por cima tinham muita cerveja
No dia 25, muitos alemães começaram a sair das trincheiras. Os britânicos encontraram-se com eles. Abraçaram-se, trocaram presentes. Inevitavelmente, apareceu uma bola de futebol.
Seguiu-se não propriamente um jogo, mas uma folia com a bola envolvendo muitas dezenas de homens de cada lado, em muitos lugares da linha de batalha.
É difícil imaginar uma história melhor do que esta. A mais simbólica de todas as copas do futebol pertence, desde então e para sempre, aos anônimos britânicos e alemães que, em números espantosos, não saíram vivos das trincheiras.
Se não for nossa, que seja dos Três Leões. Só de imaginar a cara de raiva de Jeremy Corbin…

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