Não espanta que, vivendo perpetuamente horrorizados com a presente realidade, setores mais extremados resolvam empregar a violência para destruir tudo o que lhes remeta ao mundo atual
N o final do ano passado, um sujeito chamado Luigi Mangione assassinou a tiros o CEO da United Healthcare (ex-dona da Amil), Brian Thompson. Junto aos pertences do assassino, foi encontrado um manifesto de três páginas, de teor anticapitalista radical, no qual se condenava a indústria americana de saúde e, referindo-se à vítima, dizia-se que “esses parasitas simplesmente mereciam isso”.
O que mais chamou atenção no caso foi o apoio recebido pelo assassino e o endosso ao conteúdo do seu manifesto por parte de extremistas de esquerda nos EUA e no mundo, que também têm voltado sua violência contra produtos da Tesla e de outras empresas ligadas a Elon Musk. Portanto, longe de ser um ato isolado, o crime cometido por Mangione parece fazer parte de um movimento políticocultural mais amplo, cujas ideias misturam uma série de radicalismos ideológicos tradicionais (como niilismo, anarquismo e marxismo) e elementos contemporâneos referentes à presente revolução tecnológica.
As principais ideias contidas no manifesto de Mangione inspiram-se nos princípios de um movimento conhecido como Racionalista, por vezes também chamado de Tribo Cinza. Assim como muitos dos seus entusiastas, Mangione vem de uma família rica, tem um diploma avançado e trabalhou na indústria de tecnologia. Tem interesse em inteligência artificial, criptomoedas, extensão da vida e em uma constelação de atitudes e filosofias associadas ao mundo da tecnologia. Compartilha com outros integrantes da seita uma obsessão com inteligência artificial, embora raramente a avaliem de modo positivo.
O manifesto de Mangione reflete ideias do movimento Racionalista, marcado por elitismo, obsessão crítica com tecnologia e crenças tecnognósticas | Foto: Reprodução/
Dentre os temas frequentes no ambiente Racionalista destacam-se também a Metacognição (o esforço para entender o funcionamento do próprio cérebro, com vistas a aprimorá-lo) e a Singularidade (noção de inspiração transumanista segundo a qual, num futuro próximo, os corpos humanos vão se fundir com os mecanismos e programas projetados para ampliar suas capacidades, de modo que a humanidade evolua para algo inteiramente inédito e, a bem da verdade, pós-humano).
De dentro do movimento Racionalista surgiram, ainda, outras ramificações violentas dignas de atenção, a exemplo do Zizianismo. Alguns de seus adeptos, chamados de “Zizianos”, são suspeitos de crimes recentes, como um assassinato na Califórnia, a morte de um agente da Patrulha de Fronteira dos EUA em Vermont e um duplo homicídio na Pensilvânia. O nome “Zizianismo” advém de “Ziz”, o novo nome pessoal assumido pelo transativista Jack Amadeus LaSota.
Líder e guru do grupo, LaSota é um cientista da computação que mudou de nome depois de tomar hormônios femininos e passar a se identificar como mulher. Tendo forjado o seu próprio afogamento para evitar a prisão, “Ziz” faltou a diversas audiências judiciais e, hoje, encontra-se preso por sua relação com os assassinatos pelos quais membros do grupo foram acusados. De modo similar a Mangione e seus simpatizantes, os Zizianos costumam ter boa formação educacional, muitos deles com diplomas em bioinformática e filosofia em universidades da Ivy League e em Oxford, e com empregos na Nasa, no Google e em outras grandes empresas do Vale do Silício.
Assim como Mangione, todos sofrem de uma espécie de síndrome de Raskolnikov — o famoso protagonista de Crime e Castigo, de Dostoiévski, cuja autoimagem exacerbada e a crença de ser uma espécie de super-homem nietzschiano o levaram a formular a ideia de “direito ao crime”.
Os Zizianos e outros adeptos do Racionalismo refletem um fenômeno contemporâneo perturbador. Mangione, LaSota e seus apoiadores enxergam as suas vítimas como símbolos de algo maior que precisa ser destruído. Ao serem mortas, suas vítimas já não eram concebidas propriamente como pessoas, mas como ideias. “Não foi uma criatura humana que matei, mas um princípio” — diz celebremente Raskolnikov. Dessa perspectiva, não importam o sangue vertido, a carne dilacerada e o olhar de pânico que logo se embaça. Tudo são ideias. As dos assassinos seriam ideias virtuosas. As de suas vítimas, monstruosas.
Esses grupos também esposam algumas das ideias mais radicais e disruptivas do movimento político revolucionário em nossos dias. Consideremos os Zizianos, por exemplo: a maioria deles é transgênero e obcecada com a ideia de que a identidade é inteiramente fluida e autoconstruída. Além disso, o transgenerismo seria visto aí como uma espécie de gnose — um conhecimento esotérico que conduz à salvação e aparta os seus portadores do restante da humanidade ignorante e pecaminosa.
Como disse uma testemunha próxima dos Zizianos ao jornal New York Post, esses radicais políticos acreditam, por exemplo, que tomar estrogênio os leva a um “pensamento mais claro”. Todos esses radicais compartilham de um senso de identidade desordenado e de uma desconfiança para com a própria realidade, daí sua preferência por uma existência quase que inteiramente virtual. À moda dos antigos heréticos gnósticos dos primeiros séculos da Era Cristã — para quem, ao contrário do que diz o Livro do Gênesis, o mundo foi criado por um demiurgo maligno —, creem que a realidade imediata não apenas não é real, como também é maligna.
Ou seja, o mundo, tal como se apresenta, é para eles um escândalo. Para os antigos gnósticos, o Deus verdadeiro era absolutamente transmundano, sua natureza estranha a este universo, que ele não criou nem tampouco governa, e com o qual mantém uma relação antitética. O reino divino da luz, autocontido e distante, opõe-se ao cosmos, o domínio da escuridão.
O cosmos, por sua vez, é obra de poderes (ou potestades) inferiores, que, embora sejam, de forma mediada, descendentes do Deus transmundano, não mais o reconhecem e obstruem o seu conhecimento. As potestades, criaturas mesquinhas e ciumentas que criaram e governam o mundo, são frequentemente chamadas de Archons. Em alguns sistemas gnósticos, os Archons são liderados por um demiurgo, que é o verdadeiro criador do cosmos.
Os Archons são também concebidos como carcereiros cósmicos, que bloqueiam a comunicação entre este mundo e o Além.
O dualismo gnóstico tem como característica predominante um radical anticosmismo, ou seja, uma avaliação radicalmente negativa do mundo visível e de seu criador, agrupados, ambos, num campo semântico que inclui noções como as de “escuridão”, “crueldade”, “ignorância”, “envenenamento”, “esquecimento”, “desespero”, “solidão”. O mundo criado pelo demiurgo maligno é completamente apartado do “verdadeiro” Deus.
Dessa cosmologia gnóstica deriva uma antropologia específica, segundo a qual o homem é essencialmente um prisioneiro, primeiro do mundo, mas também do seu próprio corpo. Segundo essa antropologia, o homem é feito de carne/matéria corporal (hyle), alma (psyche) e espírito (pneuma). As suas carne e alma respondem por sua natureza mundana, enquanto o seu espírito é um resquício de sua origem extramundana, ou, mais precisamente, divina.
Assim, tanto o corpo quanto a alma são tidos por frutos decaídos das potestades cósmicas. E é graças a eles, corpo e alma, que o homem se mantém preso ao mundo, restando sujeito às forças imprevisíveis do destino.
Encapsulado no corpo e na alma está o espírito, também chamado de “centelha” — uma porção da substância divina que, originária do além, despencou no mundo atual. Foi para nele manter aprisionada a centelha divina que os Archons criaram o homem. Se, no plano macrocósmico, o homem acha-se enclausurado pelas esferas celestes, no plano microcósmico o pneuma está encarcerado dentro do corpo e da alma humanos. Em seu estado não redimido, o pneuma está imerso na alma e na carne, inconsciente de si próprio, amortecido, adormecido ou intoxicado pelo veneno do mundo — em suma, ignorante. O seu despertar e a sua redenção dependem da gnose, pois o gnóstico só se liberta do cosmos-prisão quando compreende o pneuma como a essência do seu verdadeiro ser”.
O leitor que tiver curiosidade em consultar os textos gnósticos originais (reunidos na Biblioteca de Nag Hammadi) topará com inúmeras referências a essa ideia do corpo como prisão, um dualismo radical que identifica a matéria com o mal e o espírito com o bem. Eis, apenas a título de ilustração, um trecho do texto conhecido como Evangelho Secreto de João (códices II e IV da Biblioteca de Nag Hammadi): “Adentrei a prisão, que é a prisão do corpo”.
Para libertar-se da prisão que é o corpo e o cosmos, o gnóstico dispensa a fé em Cristo em favor de um conhecimento iniciático (gnose) do Deus extramundano. A gnose confunde-se com um autoconhecimento, porque, no Gnosticismo, autoconhecer-se é descobrir a existência de um “Deus interior”, a “centelha”, a verdadeira essência do homem. Equipado com essa gnose, o espírito inicia sua ascensão, deixando para trás, a cada esfera cósmica ultrapassada, as “vestimentas” corpóreas e psíquicas responsáveis por seu aprisionamento.
Com isso, despido de todas as suas amarras mundanas, o pneuma alcança o Deus transmundano, reunindo-se novamente à substância divina original, o Pleroma. Este se opõe ao cosmos-prisão como a luz à escuridão, o corpo — que inclui a “alma” (psyche) — ao espírito (pneuma), a gnose à ignorância.
De um ponto de vista teológico, o movimento ascensional é descrito como restauração de uma plenitude divina perdida. Com sua separação radical entre um eu essencial de tipo “espiritual” (ou mental, ou psicológico, ou afetivo) e um corpo material espúrio que o aprisiona e constrange, o transativismo contemporâneo — elemento constante em movimentos radicais como o Zizianismo — reproduz com notável fidelidade a antropologia gnóstica, que podemos descrever como um dualismo eu/corpo.
Para os gnósticos, o verdadeiro eu está no espírito (pneuma), que se opõe absolutamente ao corpo, o qual, nesse sentido, é um completo outro. De acordo com os transativistas, analogamente, o verdadeiro gênero acha-se na mente da pessoa, não no seu corpo natural, encarado como totalmente alheio à sua identidade pessoal. Para a ideologia trans, o corpo é concebido como mero invólucro ou veículo para uma essência imaterial.
Os seres humanos seriam pessoas não corpóreas habitando corpos não pessoais. “Sou uma mulher presa num corpo de homem” ou “sou um homem preso num corpo de mulher” — eis um tópos tipicamente gnóstico, onipresente no discurso transativista
A rejeição transativista da própria realidade corpórea e material, essa sensação de estar num corpo “errado”, parece ser uma atualização do horror gnóstico à Criação, observado já nos primórdios do Cristianismo. O mundo que o gnóstico vê é radicalmente maligno, dominado por forças perversas e desconhecidas. Em consequência, sua condição humana presente é, para ele, não somente intolerável como anormal. O gnóstico considera-se vítima temporária de uma Ideologia de gênero Transgêneros Elon Musk Tesla 1 comentário Assine ou cadastre gratuitamente para comentar catástrofe cósmica: a queda que originou o mundo e perverteu todas as coisas.
Segundo essa percepção gnóstica da realidade, o corpo foi mal criado, tanto quanto o mundo como um todo. Antes que dom de um Deus amoroso, o corpo original é aí encarado como uma maldição, assim como toda a realidade criada, obra hostil de um demiurgo maligno. Comprando o conselho da Serpente — “Sereis como deuses!” —, o homem gnóstico acredita que só ele pode criar a si próprio, incluindo seu próprio corpo, de maneira perfeita. Não espanta que, vivendo perpetuamente horrorizados com a presente realidade, setores mais extremados resolvam empregar a violência para destruir tudo o que lhes remeta ao mundo atual e, consequentemente, que os impeça de chegar ao mundo “real” — a matrix — que acreditam habitar de fato.
Flávio Gordon, Revista Oeste