sexta-feira, 4 de abril de 2025

A vez da Câmara, por Sílvio Navarro

Depois de anos de joelhos para o Supremo Tribunal Federal, os deputados têm a chance de se reaproximar da sociedade e começar a tirar o país da escalada autoritária do consórcio Lula-STF


Hugo Motta, presidente da Câmara dos Deputados, em Brasília | Foto: Reuters/Ueslei Marcelino

O jovem presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, tem uma decisão importante a tomar nos próximos dias: optar por uma guinada ainda maior em sua meteórica carreira política, ou voltar para a cidade de Patos, no sertão da Paraíba, com a popularidade do antecessor, Arthur Lira, que caiu no esquecimento dois meses depois de deixar a cadeira.

O divisor de águas é a votação do projeto que concede anistia já aos presos pelo tumulto de 8 de janeiro de 2023, em Brasília. Em princípio, a escolha de Motta parece óbvia. Então o que o impede de dar seguimento ao projeto? Aos fatos: nos últimos anos, a cronologia de presidentes da Câmara e do Senado alternou exemplares do que há de pior na classe política, interessados somente no dinheiro do Orçamento da União. 

O resultado foi o Congresso Nacional de joelhos. Como não existe vácuo de poder em Brasília, o Supremo Tribunal Federal (STF) assumiu as funções do Legislativo e aprendeu como intimidá-lo. 


Deputado Hugo Motta, presidente da Câmara dos Deputados, Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República, e senador Davi Alcolumbre, presidente do Senado Federal, no Palácio do Planalto, em Brasília - Foto: Ricardo Stuckert/PR 

Esse é o principal motivo que pode colocar Hugo Motta na galeria de nomes como Lira, Rodrigo Pacheco, Davi Alcolumbre e companhia, que têm medo da retaliação do STF. Por exemplo: em 2023, Lira se recusou a forçar a votação do Projeto de Lei nº 2.630, batizado de PL da Censura, o que desagradou o ministro Alexandre de Moraes. O então presidente da Casa acordou no dia seguinte com a notícia de que a Polícia Federal havia feito buscas na casa de um assessor em Alagoas para investigar o desvio de kits de robótica.

Eleito com 444 dos 513 votos, Motta teve o aval de quase todos os partidos, mas a argamassa de sua candidatura foi o apoio praticamente integral da direita — só o Novo não aderiu —, justamente em troca do compromisso com o PL da Anistia. Essa informação chegou ao STF. Em seguida, as emendas de Motta viraram notícia. O site Metrópoles recuperou uma gravação na qual um empresário diz que o deputado pedia propina em troca de emendas para a construção de postos de saúde na Paraíba. O caso atingiu ainda a mãe e a avó do parlamentar — toda a família é de políticos (leia mais abaixo). 

Desde o ano passado, quem decide o que pode ou não ser feito com os recursos de emendas — e se a Polícia Federal deve entrar em campo — é o ministro Flávio Dino. Ou seja, semanas depois de assumir o posto, Motta já estava na mira do STF. É um roteiro muito parecido com o que ocorreu com o seu padrinho, Arthur Lira. Além disso, há uma nova obra com problemas envolvendo o parlamentar: a restauração da Alça Sudeste e da Avenida Manoel Mota, em Patos, no valor de R$ 6 milhões. A operação da PF se chama Outside. 

Em meio à tensão pelo vazamento de denúncias na imprensa, Motta recebeu um convite inesperado: jantar na casa de Alexandre de Moraes, com outros ministros da Corte, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, o diretor da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, e a dupla Pacheco-Alcolumbre. O que aconteceu depois do encontro? Motta leu um discurso no plenário afirmando que não há perseguidos, exilados políticos nem crimes de opinião no país. Também na véspera, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) havia comunicado que se afastaria do mandato para permanecer nos Estados Unidos. 


Dino alegou que apenas em regimes ditatoriais o Judiciário pode ser silenciado, embora as decisões do Supremo jamais tenham sido tolhidas no país | Foto: Ton Molina/FotoArena/Estadão Conteúdo 

“Nos últimos 40 anos, não vivemos mais as mazelas do período em que o Brasil não era democrático”, afirmou Motta. “Não tivemos jornais censurados nem vozes caladas à força. Não tivemos perseguições políticas nem presos ou exilados políticos. Não tivemos crimes de opinião ou usurpação de garantias constitucionais. Não mais, nunca mais.” 

O mais jovem deputado eleito 

Aos 35 anos, Motta formou-se em medicina, mas nunca exerceu o ofício. É político profissional desde os 21. Foi o mais jovem deputado eleito, e agora o presidente da Casa mais novo. O município de Patos, hoje com 100 mil habitantes, a 300 quilômetros de João Pessoa, é um daqueles casos de novela, em que duas famílias dominam a cidade e, em dado momento, se unem com o casamento de um filho. O pai é prefeito da cidade, assim como foram o avô paterno e a avó materna. O outro avô foi deputado a vida inteira, e a dinastia continua.

Em Brasília, além de Arthur Lira, Motta também foi braço direito de Eduardo Cunha (RJ), quando o desafeto do PT chefiou a Câmara. É filiado ao Republicanos, e aqui entra outro problema. A sigla tem quadros da direita, entre eles o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e os senadores Cleitinho (MG) e Damares Alves (DF). Porém, o dono do partido, Marcos Pereira, também deputado federal e bispo da Igreja Universal, aceitou nomear um ministro no governo Lula da Silva — a pasta de Portos e Aeroportos, de Silvio Costa Filho. A ala religiosa não gostou, e a legenda passou a ser chamada na Câmara de Torre de Babel. 

Essa confusão ficou clara no caso da anistia: Motta fez um acordo com a direita para ser eleito presidente da Câmara, mas o chefe do partido e o ministro de Lula não querem votar o projeto — tanto para não irritar Moraes quanto para não perder o cargo no governo. A pasta tem orçamento de R$ 740 milhões e duas grandes entidades vinculadas, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). 



 Notícia publicada no G1 (26/6/2023) | Foto: Reprodução/G1


A oposição na Câmara mapeou o possível cenário de votação nesta semana. Os deputados mais otimistas falam em alcançar 350 votos, mas a conta próxima da realidade é de pouco mais de 300. O número mínimo para passar é 257. Dois veículos de imprensa — o jornal O Estado de S. Paulo e a revista Veja — tentaram, sem sucesso, contar votos por meio de enquetes. Metade da Câmara, contudo, não topou responder à pergunta por medo de perseguição do Supremo. Os votos a favor da anistia estão espalhados em todas as bancadas fora do eixo de esquerda — PT, PSB, PDT, Psol, Rede e PCdoB. Somadas, essas legendas que apoiam o consórcio STF-Lula têm só 130 votos. Esse bloco minoritário tentou, inclusive, organizar uma passeata contra a anistia em São Paulo. Pouca gente apareceu. Um dos motivos possíveis é que a esquerda perdeu a capacidade de mobilização nas ruas há duas décadas, principalmente em decorrência do fim dos sorteios de máquinas de lavar e televisores e dos shows gratuitos das centrais sindicais no feriado do Dia do Trabalho. Outro motivo razoável é a pobreza de espírito: imaginar que é convidativo ir à praça, numa manhã de domingo, bradar pela infelicidade alheia — “sem anistia” para a cabeleireira Débora dos Santos e outras mães e avós presas. 

A aritmética óbvia do placar na Câmara indica que, além do PL e do Novo, os votos necessários são do chamado centrão. Um líder do tal centro resumiu assim, depois de conversar individualmente com Motta na residência oficial, nesta semana: “Se o Motta pautar, passa. Mas ele está com muito medo do STF”.

De fato, há pressão contra o projeto, para além do Supremo. O primeiro desgaste é com Lula, que pode demitir ministros do PSD (2), União Brasil (3), PP (1) e Republicanos (1). Apesar do naufrágio na popularidade do governo, as legendas sempre pensam no orçamento dos ministérios, principalmente na liberação de emendas pendentes até as vésperas das eleições. O que isso significa na prática? Que os deputados que buscarão a reeleição pediram recursos aos ministérios para obras em seus redutos, e agora precisam entregar o dinheiro aos prefeitos — seis meses antes da campanha de 2026, prazo limite da Lei Eleitoral. Ou seja, a ideia é só desembarcar formalmente do governo em abril do ano que vem, quando a torneira do orçamento fechar

O segundo fator é a intensa campanha de desgaste da velha mídia, liderada pelo Grupo Globo — uma jornalista da GloboNews chegou a dizer com todas as letras que, se Motta bancar a anistia, “seu mandato acaba”.

Para @natuzanery, PL da anistia visa beDentro da Câmara, a estratégia política é tentar obstruir o funcionamento das comissões temáticas — funcionou naquelas em que a maioria dos integrantes é de centro-direita — e esvaziar o quórum do plenário. O líder do bloco de oposição, Luciano Zucco (PL-RS), trabalha com a planilha abaixo. A coluna de votos, com casas decimais, pode parecer estranha, mas é o que ele chama de “margem de erro”, calculando aneficiar Jair Bolsonaro e diz que projeto não deve ir em frente: "Se Hugo Motta avança com o projeto da anistia, acaba com o mandato dele".

Dentro da Câmara, a estratégia política é tentar obstruir o funcionamento das comissões temáticas — funcionou naquelas em que a maioria dos integrantes é de centro-direita — e esvaziar o quórum do plenário. 

O líder do bloco de oposição, Luciano Zucco (PL-RS), trabalha com a planilha abaixo. A coluna de votos, com casas decimais, pode parecer estranha, mas é o que ele chama de “margem de erro”, calculando a probabilidade de apoio em cada bancada. O vice-líder, Ubiratan Sanderson (PL-RS), disse que o bloco vai entregar uma lista com assinaturas de mais de 257 deputados a Motta para provar que o texto tem maioria na Casa. “O problema é que ele acendeu uma vela para Deus e outra para o diabo”, afirmou.

Notícia publicada no Metrópoles (19/3/2025) | Foto: Reproducão/Metrópoles








Projeção feita pela liderança do PL para votação do projeto da anistia política para os envolvidos no 8 de janeiro | Gráfico: Liderança do PL/Reprodução 


A última reunião sobre o tema na Casa aconteceu na quinta-feira, 3. Hugo Motta pediu aos líderes das siglas que não assinem o pedido de urgência para levar o projeto diretamente ao plenário — ou seja, sem passar por uma comissão especial. O PL e o Novo vão insistir em obstruir votações na próxima semana. O fato é que Motta está numa encruzilhada. Precisará escolher nas próximas semanas entre enfrentar as ameaças do consórcio de poder e bancar a votação, o que inevitavelmente vai transferir toda a pressão para o Senado, ou ver o futuro político lhe escapar das mãos, como um Rodrigo Pacheco.


Sílvio Navarro - Revista Oeste