Nicholas Feliz-Dominici morreu ao ingerir acidentalmente um comprimido de fentanil na creche; parente da proprietária do estabelecimento era traficante.| Foto: Arquivo familiar
O menino Nicholas Feliz-Dominici completaria 2 anos em novembro. Ele morreu de overdose de fentanil – uma droga sintética 100 vezes mais potente que a morfina e que é o maior desafio de saúde pública dos Estados Unidos. O pequeno Nicholas ingeriu a substância, possivelmente um comprimido, que ele encontrou no chão do berçário onde passava o dia, enquanto os seus pais trabalhavam. Além dele, outras duas crianças – um menino de 2 anos e uma menina de apenas 8 meses – também se intoxicaram e por muito pouco não tiveram o mesmo fim trágico.
As crianças ingeriram fentanil em um berçário porque o local era também um ponto de tráfico. Um dos familiares da proprietária estocava a droga e a repartia para distribuir nas ruas da região. A polícia encontrou um quilo da droga e prensas típicas para fazer tabletes como os de maconha e cocaína.
A morte de Nicholas mostrou que a pandemia de opioides, que, segundo as estatísticas mais recentes matou 80.411 pessoas em 2021, não poupa ninguém. Uma pandemia que, além das mortes, tem deixado um rastro de destruição em milhares de famílias de viciados que vivem como zumbis pelas ruas da América.
Em 2021, 40 bebês e 93 crianças de 1 a 4 anos morreram de overdose de fentanil por exposição acidental. Quase sempre por estarem no mesmo ambiente com pais ou demais familiares viciados
Mas Nicholas não é um ponto fora da curva da barbárie provocada pelo consumo de drogas. Segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, conforme a sigla em inglês), em 2021, 40 bebês e 93 crianças de 1 a 4 anos morreram de overdose de fentanil por exposição acidental. Quase sempre por estarem no mesmo ambiente com pais ou demais familiares viciados.
Um levantamento da Escola de Medicina da Universidade Yale mostrou que, além das 133 crianças menores de 4 anos, outros 1.424 menores de idade também morreram graças a essa droga. Apenas dois anos antes, em 2019, o número de crianças mortas por terem sido expostas acidentalmente ao fentanil ou por terem se tornado viciadas triplicou.
Quantas crianças morreram desde então? Quantos mais ainda morrerão? O atraso na preparação e divulgação dos números pode nos reservar um quadro sombrio que os defensores da liberação do uso das drogas tendem a ignorar; afinal, bebês morrendo acidentalmente por consumo de fentanil não combina bem com a tese de que o uso de drogas é uma escolha do indivíduo com repercussões exclusivas sobre ele.
Se a tendência de crescimento da overdose de crianças e adolescentes tiver se mantido, o fato de a morte de Nicholas ter chamado a atenção pode ser um sinal de quão avassalador tem sido o fenômeno que não poupa nem os fetos. Em 2017, as autoridades de saúde dos Estados Unidos registaram que 5.375 recém-nascidos precisaram ser tratados, logo nos primeiros meses de vida, da abstinência do fentanil. Um vício adquirido no ventre de suas mães usuárias de drogas.
No Brasil, fenômeno semelhante ocorre com o crack, cuja liberação há quem defenda. Em 2018, apenas em um hospital da capital paulista nasciam, todos os meses, uma média de 30 crianças viciadas. Bebês com crise de abstinência que, além de terem de passar por uma desintoxicação nos primeiros meses de vida, levarão consigo para sempre as sequelas da “reengenharia” cerebral provocada pela exposição ao crack desde a fase embrionária, passando pela fetal e, se não impedidos, até pela amamentação.
Liberar o consumo poderá reduzir o tráfico, mas, mais do que tudo, resolverá a vida dos bandidos, não a das vítimas. Crianças seguirão morrendo, por acidente ou vício
Essa enxurrada de números frios frente a uma tragédia com nome e rosto como a de Nicholas parece fria. Mas cada um dos números tinha um nome, rosto e família. Embora eles tenham se perdido nas estatísticas, juntos e no mais profundo anonimato, esses meninos e meninas mortos ou viciados ainda no ventre de sua mãe poderiam ter tido um destino diferente se não fosse o tráfico de drogas.
Liberar o consumo poderá reduzir o tráfico, mas, mais do que tudo, resolverá a vida dos bandidos, não a das vítimas. Crianças seguirão morrendo, por acidente ou vício. Não há mitigação de danos que reverta o que, possivelmente, é o efeito mais perverso e covarde do vício em drogas. O vício e a morte de bebês.
Leonardo Coutinho, Gazeta do Povo