O procurador-geral da República, Augusto Aras.| Foto: José Cruz/Agência Brasil
Augusto Aras vai deixar o comando da Procuradoria-Geral da República (PGR) nesta terça-feira (26), e dedicou a última sessão à frente da instituição, na última quinta-feira (21), para defender seu "legado" e dizer que as críticas à sua gestão são "falsas narrativas". No entanto, a herança construída por Aras envolve o desmonte de forças-tarefas, entre elas as da Lava Jato, e o enfraquecimento do combate à corrupção no país.
"Os desafios dos últimos quatro anos foram adicionalmente cercados por algumas incompreensões de falsas narrativas, dissonantes com o trabalho realizado, documentado e publicizado", afirmou.
Indicado duas vezes pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o procurador-geral se destacou por suas críticas à Operação Lava Jato e por ter atuado ativamente para encerrá-la, com o fim das forças-tarefas. Fato que ocorreu em 2021.
A cartada final de Aras contra a operação veio em 16 de setembro de 2023, quando o procurador-geral anunciou que não iria recorrer da anulação das provas obtidas no acordo de leniência da construtora Odebrecht. A decisão foi tomada pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF).
"Fui acusado de destruir a Lava Jato, quando apenas institucionalizei e despersonalizei o Ministério Público. Hoje, a sociedade enxerga seu verdadeiro "legado maldito", seu "modus operandi" que ceifa vidas, a política, a economia e afronta a soberania nacional", disse o PGR em nota divulgada em 7 de setembro, um dia após a decisão do ministro.
Além de atuar contra a operação iniciada em Curitiba, Aras teve papel fundamental nos inquéritos iniciados pelo STF, como o das “fake news” e o dos “atos antidemocráticos”. E apesar de ter sido fortemente criticado por petistas na época em que foi indicado por Bolsonaro, o PGR caiu nas graças dos atuais governistas por manter o Ministério Público Federal (MPF) em "rédea curta" contra eventuais investigações sobre políticos importantes do Congresso Nacional.
Aras apoiou os inquéritos das "fake news" e dos "atos antidemocráticos"
Indo na direção oposta à sua antecessora, Raquel Dodge, Aras afirmou em outubro de 2019 que o inquérito tratava de "atuação legítima do Supremo para apuração de fatos supostamente criminosos aptos a lesionar o funcionamento da Corte". Na época, o PGR se pronunciou após a Rede Sustentabilidade ingressar com uma ação pedindo a suspensão do inquérito das "fake news".
Ele também afirmou que o inquérito estava dentro da legalidade, porque é previsto no regimento do STF, Além disso, segundo ele, a apuração não afrontaria a Constituição. Mas destacou que o MPF tinha que fazer parte, visando “os direitos e garantias fundamentais dos investigados”. Por outro lado, descartou a necessidade de anular as investigações por ausência do órgão. É importante destacar que o inquérito tramitou durante quase um ano sem participação efetiva do Ministério Público Federal nas apurações.
"O inquérito previsto no art. 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, portanto, encontra amparo na separação de Poderes. Tem o seu alcance limitado à defesa do funcionamento autônomo e independente da mais alta Corte do país. Todavia, a possibilidade de instauração atípica de inquérito judicial pelo Supremo Tribunal Federal, na forma do art. 43 do seu Regimento Interno, com base na garantia de exercício independente das funções do Poder Judiciário, não significa que o procedimento preliminar possa ser conduzido em desconformidade com o modelo penal acusatório", disse Augusto Aras no documento.
No caso do inquérito dos “atos antidemocráticos”, as investigações foram tocadas desde o início pela Procuradoria-Geral da República. Nesse sentido, Aras teve uma participação fundamental, já que pediu a abertura da investigação após as manifestações de 19 de abril de 2020. Nesse dia, deputados de direita e o próprio Bolsonaro fizeram críticas à atuação do STF.
O pedido foi aceito pelo ministro Alexandre de Moraes e as investigações miraram nos apoiadores próximos ao ex-presidente. O ex-deputado federal Daniel Silveira (PL-RJ), mais tarde, teve seu mandato cassado por desdobramentos desse inquérito. Já o jornalista Allan dos Santos, antigo dono do canal Terça Livre, precisou sair do país para não ser preso em decorrência do processo. Outro caso que ganhou destaque foi a prisão da ativista Sara Winter, detida por organizar manifestações em frente à sede do Supremo.
Na época, Aras chegou a dizer que o inquérito deu uma “certa estabilidade ao país num momento relevante”. "Graças a esse inquérito, nós fizemos, dentro do devido processo legal, o procedimento investigativo para compreender qual a dinâmica, qual o propósito de grupos ou de pessoas ou mesmo parlamentares no sentido daquela crescente atividade extremista e o resultado que nós vemos, de extrema importância, houve um arrefecimento daquela vontade [de praticar atos extremistas]", disse o procurador a jornalistas.
A promotora de Justiça do Ministério Público do Paraná (MPPR) Claudia Piovezan, que organizou os livros “Inquérito do fim do mundo - O apagar das luzes do Direito brasileiro” e “Sereis como deuses: O STF e a subversão da justiça”, relembra a responsabilidade do PGR nos inquéritos abertos pelo Supremo.
"De fato, o Procurador-Geral Augusto Aras chancelou o Inquérito 4.781 apontando apenas ilegalidades na falta de intervenção do Ministério Público. Ele ignorou inconstitucionalidades e ilegalidades que maculam o procedimento ab initio [desde o começo] e que foram apontadas exaustivamente por diversos juristas no livro Inquérito do fim do mundo e nas demais obras da trilogia, Sereis como deuses e Suprema desordem", disse a promotora.
Por outro lado, ela ressalva que o resultado dos desdobramentos dos inquéritos não seriam diferentes se Aras fosse contra. "Se sua posição tivesse sido diversa, seria igualmente desprezada pelo relator do feito e pela maioria da Corte. Tal como ocorreu com os dois arquivamentos promovidos pela PGR anterior, Raquel Dodge, e tem ocorrido com as defesas dos investigados", acrescentou Claudia.
O desmonte da Lava Jato
Desde que chegou ao cargo, o procurador se articulou para criar ingerências dentro da Operação Lava Jato via PGR. Em junho de 2020, a subprocuradora Lindôra Araújo esteve em Curitiba e tentou acessar o banco de dados da Lava Jato – o que causou a estranheza dos procuradores do Ministério Público Federal (MPF) do Paraná.
A PGR alega que enviou um ofício à força-tarefa, em maio daquele ano, pedindo acesso às informações, mas não obteve resposta. A solicitação estaria baseada em decisões judiciais, mas a Lava Jato discorda dessa interpretação. O caso foi parar na Corregedoria do Ministério Público Federal, que abriu um procedimento para apurar a conduta da subprocuradora.
Apesar da negativa, Aras conseguiu junto a Toffoli uma decisão monocrática obrigando as forças-tarefas da Lava Jato de Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro a compartilharem com a Procuradoria-Geral da República seus bancos de dados – inclusive informações sigilosas.
Atuação política contra a Lava Jato
Preparando o terreno para o encerramento da Operação, Aras também se reuniu com advogados anti-Lava Jato para criticar o trabalho realizado. Ele participou de uma live com o grupo Prerrogativas - composto por advogados que apoiam Lula e o PT - em 2020. O procurador-geral da República criticou o fato de a Lava Jato ter mais dados do que todo o sistema unificado do MP.
“Não que o procurador-geral da República seja o dono do destino de 38 mil pessoas, mas que todo o MP possa, de forma fundamentada e devidamente instruída, justificar para que quer saber da vida alheia. Para que não sirva de bisbilhotice, chantagem, distorção ou nenhum propósito anti-republicano”, criticou.
Ele ainda defendeu a necessidade de "corrigir os rumos" para que o “lavajatismo não perdure”. “Contrariamente a isso, o que nós temos aqui na casa é o pensamento de buscar fortalecer a investigação científica e, acima de tudo, visando respeitar direitos e garantias fundamentais”, disse.
Ainda em 2020, Aras chegou a prorrogar a força-tarefa até janeiro de 2021. Mas diferentemente das outras vezes, a PGR não lotou os procuradores em Curitiba. Na prática, isso significou que os investigadores que estavam emprestados à força-tarefa tiveram que voltar a morar nas cidades onde estavam lotados — caso contrário, poderiam ser punidos.
Uma segunda renovação da Lava Jato chegou a ser programada para outubro de 2021, mas em fevereiro do mesmo ano, o MPF anunciou o encerramento da operação no Paraná, anexando as investigações ao Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPF do Paraná. Apesar de estar nominalmente em funcionamento, o grupo de trabalho não possui a mesma estrutura investigativa dos primeiros anos da Lava Jato.
Outras forças-tarefas de combate à corrupção também foram encerradas sob a gestão de Aras. É o caso da Operação Greenfield, que investigou fraudes em fundos de pensão de estatais e que, ao ser finalizada, só havia concluído 45% de suas metas.
Perseguição contra procuradores da Lava Jato
No mesmo mês em que encerrou a operação, Aras enviou à Corregedoria do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) um pedido de investigação contra procuradores da força-tarefa da Lava Jato de Curitiba. A solicitação havia sido feita pelo então presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Humberto Martins.
A investigação decorreu da troca de mensagens entre os procuradores vazadas por hackers. No conteúdo das mensagens, o procurador Deltan Dallagnol supostamente teria sugerido pedir à Receita Federal uma análise patrimonial dos ministros do STJ. Em resposta, os ex-integrantes da força-tarefa negaram “qualquer ato de investigação sobre condutas de autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função”.
Aras tentou nova recondução ao cargo
Atualmente, a intensificação das críticas de Aras contra a operação ocorre no mesmo período em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) avalia os candidatos ao comando da PGR. Nos bastidores, o atual procurador-geral ensaiou uma campanha para ser reconduzido por Lula, tendo inclusive o apoio de associações ligadas ao Ministério Público Federal.
Em agosto, conselheiros do Conselho Nacional do Ministério Público manifestaram apoio irrestrito a Aras. Segundo o documento, ele “sempre pautou suas atuações pelos parâmetros constitucionais, afastando-se de pressões partidárias ou políticas e orientando seu trabalho pela concepção de que o campo jurídico não deve intervir na esfera política, salvo quando absolutamente necessário”.
A movimentação, no entanto, não surtiu efeito e Lula parece estar inclinado a escolher o vice-procurador-geral eleitoral Paulo Gonet para comandar a PGR. O magistrado do Ministério Público Eleitoral é ligado ao ministro Gilmar Mendes e ao ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
STF e PT disputam vaga deixada por Aras
O mandato de Aras chega ao fim nesta terça-feira (26), mas Lula ainda não decidiu qual nome irá escolher para o comando do MPF. Durante entrevista no Palácio Itamaraty, nesta segunda-feira (25), o petista afirmou que não tem “pressa” para apontar um indicado. Ele também afirmou que gênero e cor de pele não serão critérios para a escolha, postura que desagrada à base petista.
“No momento que eu tiver que tomar a decisão, vocês podem ficar tranquilos que eu vou anunciar para vocês: ‘Escolhi a pessoa certa para colocar no lugar’. Mas eu não tenho pressa", afirmou Lula. E acrescentou: "O critério não será mais esse [gênero]. Eu estou muito tranquilo, por isso que eu tô dizendo que eu vou escolher uma pessoa que possa atender aos interesses e expectativas do Brasil. Uma pessoa que possa servir o Brasil. Uma pessoa que tenha respeito com a sociedade brasileira. Uma pessoa que tenha respeito, mas não medo da imprensa. Uma pessoa que vote adequadamente sem ficar votando pela imprensa", disse.
Nos bastidores, ministros do STF e o PT travam uma disputa para convencer Lula sobre o melhor indicado. Como mencionado, no lado dos magistrados, o procurador-geral eleitoral Paulo Gonet desponta na preferência por ser ligado a Mendes e a Moraes.
Já do lado petista, o subprocurador Antonio Carlos Bigonha é defendido como alguém de confiança do partido. Ele é próximo a nomes de peso da sigla, como o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu.
Vinícius Sales e Renan Ramalho, Gazeta do Povo