O Mercado Livre aumentou para 12 centros de distribuição o tamanho de sua operação brasileira neste ano | Foto: Divulgação/Mercado Livre
Como uma ideia ousada sobre vender produtos pela internet saiu da cabeça de Marcos Galperin e tornou o empreendedor a pessoa mais rica da Argentina
Bastam alguns cliques hoje em dia. A pandemia do coronavírus acostumou o brasileiro com um novo comportamento de compra, sem necessidade de sair de casa. Para algumas empresas em particular, as circunstâncias inesperadas da crise sanitária foram um convite ao gigantismo. A marca que talvez melhor ilustre esse momento é o Mercado Livre, grupo com DNA argentino que tem dominado o bilionário comércio eletrônico nacional.
Em 2021, o faturamento do setor ultrapassou R$ 160 bilhões no Brasil, com aumento de 27% em relação a 2020. Foi justamente nessa janela da covid-19 que o Mercado Livre decolou, fechando o último ano em quinto lugar entre as empresas mais valiosas da América Latina, com valor de mercado estimado em US$ 61 bilhões — à frente de Ambev e Itaú e pouco atrás de Petrobras e Vale.
“O Mercado Livre pareceu mais preparado em relação a empresas que tinham um negócio que dependia em grande medida dos canais físicos”, comenta Luiz Claudio Dias Melo, especialista em produtos e cadeia de mantimentos da consultoria 360 Varejo. “Boa parte das receitas dessas empresas de uma hora para outra desapareceu, embora elas já tivessem o e-commerce desenvolvido. Já o Mercado Livre não parou, foi a grande solução para atender o mercado. Foi um momento em que eles conseguiram ganhar o marketshare.”
O começo
Fundado em 1999 na Argentina, ainda nos primórdios da vida on-line, o Mercado Livre está hoje presente em 18 nações latino-americanas. Mas é o Brasil que puxa a performance da companhia — o país responde por 53% da receita do grupo. Logo no primeiro ano de existência, a empresa desembarcou por aqui antes que forças locais do varejo despertassem para o e-commerce.
Hoje, o grupo toca uma operação logística complexa, recentemente aumentando para 12 o número de centros de distribuição. Apostando também na fintech Mercado Pago, a empresa anunciou em março um investimento de R$ 17 bilhões para incrementar a atuação brasileira. Afinal, a briga contra uma concorrência que conta com o gigante global Amazon, além de novidades chinesas como a Shopee, vai além de saber quem entrega mais rápido.
“Está havendo um processo de comoditização. A tendência é que as plataformas fiquem cada vez mais parecidas umas com as outras”, analisa Dias Melo. “Os vendedores que negociam no Mercado Livre vão ser os mesmos de Amazon, Magalu e Americanas. Os produtos serão os mesmos, a entrega vai ser rápida. Logo não vai fazer diferença comprar aqui ou lá.”
O diferencial
Por isso, o grupo vem apostando em tecnologia, especificamente em soluções financeiras. A intenção é envolver vendedores e compradores num ecossistema completo, com crédito, sistemas de pagamento e recursos logísticos. Recentemente, a Magalu também adotou esse caminho complementar, anunciando o lançamento de uma fintech própria.
“O Mercado Livre foi a primeira plataforma a aceitar criptomoedas”, observa Virgílio Lage, especialista em mercado financeiro da Valor Investimentos. “Eles também funcionam como banco, conseguem promover CDBs (Certificado de Depósito Bancário). As empresas de varejo vêm sofrendo na bolsa com a alta da taxa de juros, mas o Mercado Livre sofreu menos que as concorrentes menores nessa situação.”
As ações do Mercado Livre estão listadas na Nasdaq norte-americana, e na bolsa brasileira são negociadas por meio das Brazilian Depositary Receipts (BDRs), modelo que permite investimento em empresas estrangeiras sem capital aberto no país. Segundo a B3 de São Paulo, a empresa teve o BDR mais negociado de março, na frente de Tesla e Alibaba, mesmo num momento de queda de papéis de varejo no país, em razão da alta dos juros.
A pirataria
Uma operação de tamanho gigantismo, no entanto, ainda apresenta alguns pontos vulneráveis. Uma das ameaças à operação de uma plataforma de comércio eletrônico é a infiltração de produtos piratas ou falsificados. Por isso, o Mercado Livre vem investindo em medidas para coibir práticas ilegais.
Entre os esforços, estão melhorias contínuas de ferramentas, com base no relato de usuários, e tecnologia de inteligência artificial para exclusão de vendedores e anúncios que possam infringir direitos de propriedade intelectual. Em 2021, o Mercado Livre também aderiu ao Guia Antipirataria do Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP), que faz parte do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Somente em 2020, a plataforma informou ter investido mais de US$ 100 milhões em um programa de proteção a marcas.
Com Sudeste e Sul ocupados, a missão do Mercado Livre agora é desbravar as distâncias continentais do país
“A empresa tem um compliance pesado”, afirma Dias Melo, da 360 Varejo. “Porque por muitos anos eles foram acusados de fomentadores daquele ‘mercado cinza’, de produtos piratas, falsificados, de origem duvidosa. Ao longo desses últimos anos, tornaram-se uma outra empresa. Com méritos, estão ocupando a primeira posição, fruto de ser uma empresa muito ágil.”
Outra preocupação da operação no varejo é a privacidade. Em março, o Mercado Livre admitiu que os dados de cerca de 300 mil de seus usuários foram acessados indevidamente. Na oportunidade, a companhia manifestou que não encontrou nenhuma evidência de que seus sistemas tenham sido comprometidos ou que “tenham sido obtidos senhas de usuário, saldos em conta, investimentos, informações financeiras ou de cartão de pagamento”.
O caso fez o Procon de São Paulo pedir esclarecimentos à empresa, conforme a Lei Geral de Proteção de Dados. O Mercado Livre foi confrontado a informar quando constatou o problema, quais serviços foram atingidos e quantos consumidores afetados. Outras operações de comércio eletrônico foram alvos de ataques do gênero recentemente, como as Americanas e as Lojas Renner.
Tempo de entrega
Com Sudeste e Sul ocupados, a missão do Mercado Livre agora é desbravar as distâncias continentais do país. Fazer a entrega de um pacote chegar a Manaus em um dia — em vez de nove — é parte do desafio logístico que a empresa dos carros amarelos topou encarar.
O grupo anunciou em março que vai injetar R$ 17 bilhões na operação brasileira. O montante representa um aumento de 70%, em comparação com o valor investido no país em 2021. Dessa forma, hoje a empresa ostenta 12 centros de distribuição do tipo fullfilment, aqueles nos quais é responsável pela logística de ponta a ponta. Além de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Distrito Federal, a companhia está negociando a abertura de uma nova unidade no Ceará.
Pelos cálculos do Mercado Livre, a empresa deve fechar 2022 com cerca de 16 mil funcionários somente no Brasil. Além desse contingente, existe uma pequena multidão de parceiros externos. Os centros de distribuição lidam diariamente com vendedores de todos os tamanhos de negócios, e eles precisam seguir regras rígidas de acesso.
Para quem vai deixar produtos para armazenamento, está proibida a entrada com bermudas, regatas ou sapatos abertos, bem como portar alimentos e dispositivos sonoros em alto volume. Também não são permitidos gravações da estrutura nem o ingresso de carros com acompanhantes. Para entrar e sair, somente com nota fiscal e código QR emitidos e verificados. O zelo para resguardar a jornada do pedido vale dinheiro em um mercado de competição acirrada.
Seis aviões
A ampliação da frota aérea também foi contemplada na recente rodada de investimentos. O Mercado Livre fechou em abril um acordo de parceria de dez anos com a Gol para transporte de cargas. O negócio envolve seis aeronaves modelo Boeing 737-800, pertencentes à companhia aérea, que serão convertidas para cargueiros com capacidade para 24 toneladas. Assim, o grupo espera reduzir em até 80% o tempo de entrega para rotas mais longas (regiões Norte e Nordeste) e em até 50% nas médias (Centro-Oeste).
Três aeronaves da Gol entram em operação no segundo semestre deste ano e outras três vão reforçar a frota durante 2023. O acordo considera também a opção de adicionar mais seis modelos de carga até 2025. “Vamos reduzir o tempo de entrega para as regiões Norte e Nordeste em até 80%, alterando o prazo de entrega de Manaus, por exemplo, de nove dias para apenas um dia”, afirma Fernando Yunes, vice-presidente sênior da empresa e líder da operação brasileira. “Em capitais do Nordeste, o prazo atual de quatro dias também vai cair para apenas um. Já os consumidores de Goiânia e Cuiabá, por exemplo, vão passar a receber seus pacotes no dia seguinte.”
Uma ideia ousada sobre vender produtos pela internet saiu da cabeça de Marcos Galperin há 23 anos e tornou o empreendedor a pessoa mais rica da Argentina, com uma fortuna estimada em US$ 3,9 bilhões. Mas é em território brasileiro que as cifras não param de ser atualizadas e que fazem do Mercado Livre uma potência. É por aqui que a frota dos veículos amarelos vai seguir desafiando o relógio e a concorrência.
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Revista Oeste