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Os argumentos contra a privatização da Petrobras são invariavelmente generalidades repletas de bordões e ocas de lógica
Ao assumir o Ministério de Minas e Energia e demarcar as prioridades de sua gestão — a saber, o aperfeiçoamento dos chamados marcos legais, a capitalização da Eletrobrás e as desestatizações da PPSA (Pré-Sal Petróleo) e da Petrobras, e dar início oficialmente aos estudos para o processo de desestatização da última —, o economista Adolfo Sachsida inaugurou uma nova era, a da dessacralização das “vacas sagradas” que pastam em nossa economia há muitas décadas.
O novo ministro — assim como o da Economia — é um liberal convicto e deixou claro logo na primeira entrevista que estava agindo com o aval do presidente. Por isso, há motivos sólidos para apostar que a mais recente troca na presidência da Petrobras, contrariamente ao que muitos pensam, não tem o objetivo de mudar a política de preços da empresa, mas, sim, capitalizá-la com vistas à privatização.
Será um processo longo, penoso, passará por muita discussão e enfrentará toda a sorte de resistências. Ao mexer no petrovespeiro, o governo atraiu a ira dos arautos do atraso. Foi tiro e queda: poucas horas após o ato do ministro, o presidente do Senado — um político conhecido por discursos empolados, mas despidos de qualquer substância — correu para afirmar que “o momento que o país atravessa não seria propício para desestatizar a empresa”. Ou seja, defendeu abertamente que devemos continuar fazendo oferendas à simpática deusa, a fêmea do boi. Uma afirmativa descabida, mas que, paradoxalmente, contém um pouco de verdade, já que o “momento ideal” não é de fato o atual, mas não pelo motivo alegado, e sim porque já aconteceu faz tempo, mais precisamente há sete décadas, quando, ao ser criada a empresa, se cometeu o erro duplo de optar por uma estatal e, de quebra, premiá-la com um monopólio legal.
O bombardeio prosseguiu no dia seguinte. Um sindicalista ameaçou desencadear uma greve geral dos petroleiros, caso o governo “ousasse” dar início à desestatização. E parlamentares da esquerda rupestre anunciaram que vão se empenhar para que o novo ministro vá ao Congresso “dar explicações” sobre o que o governo pretende fazer com a empresa, que ainda chamam de “patrimônio do povo”. Atiçaram as vespas e elas vão continuar reagindo.
Brasil X Estados Unidos
Que tal esclarecer algumas coisas? Embora os preços dos combustíveis venham aumentando no mundo inteiro, é preciso saber por que os consumidores brasileiros pagam mais caro, em valores absolutos, pela gasolina e pelo diesel do que nos outros países. Há quatro explicações, não mutuamente excludentes. A primeira é que, enquanto nos Estados Unidos a porcentagem de tributos nos preços na bomba é de 10%, no Brasil beira os 50%, principalmente devido ao ICMS cobrado pelos Estados. A segunda é que a logística de transporte de combustíveis empregada aqui é a dos caminhões, ao passo que nos Estados Unidos se priorizam dutos, o que barateia bastante os custos. Terceira, a competição no setor é muito baixa, com cerca de 90% do refino nas mãos da Petrobras (que detém 13 das 14 refinarias existentes), enquanto nos Estados Unidos existe mais de uma centena e meia de refinarias privadas. A quarta é o custo do etanol, que no Brasil é obrigatoriamente incluído na composição da gasolina.
No curto prazo, o que pode ser feito para enfrentar o atual desafio dos aumentos de preços? Certamente, não é abandonar a política de paridade internacional e muito menos controlar os preços do setor, lembrando que, na última vez em que esse erro foi cometido, no governo da criatura que depois veio a sofrer impeachment, a herança foi um rombo de R$ 40 bilhões. É chegada a hora de abandonar definitivamente os cacoetes intervencionistas que tanto prejudicaram a empresa e os consumidores em suas quase sete décadas de existência. O que fazer, então?
Alguns especialistas recomendam aguardar o desfecho de um processo que está tramitando no Cade sobre um duvidoso “abuso de poder econômico” por parte da Petrobras. Outros, a criação de um fundo. Há quem sugira a troca da referência CIF (que inclui frete e seguro) por FOB (free on board, grátis a bordo) para o preço que é cobrado pelas refinarias. Alguns sugerem reajustar os fretes automaticamente quando houver alta no preço de combustível, como forma de tentar manter estável a margem dos caminhoneiros e de outros participantes. Por fim, outros sugerem algo como uma “banda de preços”, dentro da qual a empresa respeitaria as mudanças no mercado internacional e, quando o preço internacional do barril ficasse abaixo do piso ou acima do teto da referida faixa, então haveria alguma intervenção.
A única solução
A primeira alternativa é incerta e superficial e todas as outras são intervenções no mercado, algumas veladas e outras abertas, mas todas sempre indesejáveis. Qualquer tentativa de forçar os preços domésticos a ficarem abaixo da paridade internacional produzirá os mesmos efeitos colaterais perversos que acontecem com outras commodities, tais como o açúcar e o café, que, mesmo produzidos no país, sofrem influência da taxa de câmbio e dos preços externos. Na verdade, existe uma e somente uma solução, e o governo já tem ciência disso. A sociedade brasileira precisa reconhecer que não faz sentido nenhum o Estado ser sócio de empresas, sejam petrolíferas, financeiras, sejam de quaisquer outros ramos.
É fácil identificar os grupos que, invariavelmente, se colocam contra toda e qualquer privatização: nacionalistas ufanosos, sindicalistas raivosos, socialistas rançosos, economistas falaciosos, funcionários temerosos e políticos sempre “caridosos” com o dinheiro alheio.
Os argumentos contra a privatização da Petrobras são invariavelmente generalidades repletas de bordões e ocas de lógica: “o petróleo é nosso”, “o setor é estratégico”, “não podemos vender o patrimônio público a preço de bananas”, “a empresa já é eficiente”, “ela tem uma função social” e outros arroubos juvenis semelhantes, que torturam há bastante tempo os ouvidos apurados. É um panegírico repleto de clichês daquele nacionalismo ultrapassado de Vargas e Brizola e sem nenhuma substância. Puro populismo eleitoreiro.
Não existe, simplesmente, o tal “patrimônio público”, pois se alguém entrar na sede da Petrobras achando que o prédio lhe pertence, será detido pelos seguranças na portaria e terá de se identificar e informar o que vai fazer. O “petróleo é nosso” é outra falácia, já que, se um motorista ingênuo mandar um frentista encher o tanque do seu carro e disser que não vai pagar por isso, certamente terá problemas. O argumento “estratégico” também é frágil, já que, no caso probabilisticamente impossível de o Brasil se envolver em uma guerra contra o país-sede da empresa privatizada, basta acionar as Forças Armadas e “tomá-la”, como, aliás, Evo Morales fez em 2006 com duas refinarias da Petrobras na Bolívia, com a “bênção bolivariana” do então presidente do Brasil. A alegação de que a Petrobras já é eficiente pode ser assim retrucada: sim, você tem razão, mas poderia ser muito mais. E a lenga-lenga de que a empresa tem uma “função social” (seja lá o que for isso) não passa de um pleonasmo enfeitado de boas intenções, uma vez que toda e qualquer empresa, privada ou pública, tem uma função dentro da sociedade, porque as atividades econômicas são também, por definição, sociais.
Onde mora o butim
Por que os políticos e os sindicalistas são contra a privatização de estatais? Por que disputam a tapas o seu controle? E por que brigam mais por algumas diretorias, mesmo quando estas, por princípio, devem ser geridas tecnicamente? A resposta está na possibilidade de se fazer uso do “departamento de licitações e propinas”, em conluio com empresários inescrupulosos. É lá que mora o butim. Obras contratadas por estatais atingem valores elevadíssimos, e sabemos que, quanto mais abundante for o dinheiro, maior é a facilidade de desvios. Isso ficou óbvio depois do verdadeiro assalto a que foi submetida a própria Petrobras no passado recente, e a única maneira de evitar que aqueles tristes episódios sejam repetidos por algum governo futuro é isolar o pires de leite dos gatos, privatizando a empresa.
É preciso caminhar para o futuro e abandonar a falsa identificação entre interesse da Petrobras e interesse nacional
No mundo inteiro os preços do petróleo e derivados estão, de fato, assustadores e os lucros das empresas do setor cresceram fortemente. Mas a solução não é voltar a controlar preços nem apelar para o “patriotismo” de diretores e acionistas. A Petrobras, como empresa de economia mista, que tem obrigações a cumprir com acionistas de qualquer tamanho, conforme as regras de diversos reguladores e agentes de mercado, como CVM e SEC, não pode cobrar um preço menor para a gasolina ou o diesel do que o vigente no mercado internacional, pois isso configuraria um descumprimento das regras do jogo, que poderia inclusive levar seus administradores a sofrerem sanções legais.
Mas não é só isso. A prática de um preço artificial abaixo do preço internacional poderia causar um sério efeito colateral, o desabastecimento de derivados no país, porque o Brasil não é autossuficiente na produção e importa boa parte da gasolina ou diesel utilizados por carros e caminhões. A imposição de um preço abaixo do preço internacional para esses derivados diminuiria a atratividade da importação: quem gostaria de importar uma commodity, por exemplo, pagando US$ 100, para vender no mercado doméstico por US$ 90? Não há “preocupação social” que justifique tal disparate, até porque, depois de algum tempo, os pagadores de impostos e os acionistas da empresa seriam obrigados a “contribuir” para fechar o rombo.
Considerando a preocupação genuína do governo quanto ao preço da gasolina e do diesel, a atitude mais correta não é cobrar da Petrobras a aplicação de um preço mais baixo, nem maldizer os seus “lucros exorbitantes”. O que o governo deve fazer — com o novo ministro à frente — é criar um ambiente competitivo, que incentive o investimento, a melhor solução e de impacto permanente, mas que demandará algum tempo para surtir efeito. Precisamos de investimentos privados em refinarias, petroquímicas e empresas de todos os tipos, porque geram riqueza, renda e empregos. A competição gerada pela entrada de novos participantes no mercado trará sempre benefícios para os consumidores, embora, no caso de commodities, a vinculação ao preço internacional e, portanto, à taxa de câmbio, seja parte permanente do enredo.
Redução de impostos
E no curto prazo, o que fazer? A redução de impostos também teria efeito duradouro sobre os preços, além do imediato — como, aliás, o governo federal vem tentando fazer, mas enfrentando resistência de muitos governadores. A redução da arrecadação dos Estados deve ser considerada, mas os benefícios e os custos dessa solução muito provavelmente seriam preferíveis àqueles dos programas de subsídios, que, como em qualquer intervenção sobre preços, são caros e simplesmente não funcionam.
O Estado — sempre e em qualquer lugar — é um desastre como gestor de empresas. A média histórica de permanência no cargo de presidentes da Petrobras é baixíssima: desde 1954, quando foi criada, até hoje, ou seja, em 68 anos, foram 41 nomes (já incluindo a mais recente das três trocas ocorridas desde 2019). Ou seja, em média, 19,9 meses, ou 1,65 ano para cada um. Isso significa descontinuidade na gestão e desmotivação dos funcionários, entre outros problemas. Comparadas com suas concorrentes internacionais, as ações da Petrobras deveriam valer muito mais. Sua dívida, que já foi de US$ 200 bilhões, está em US$ 60 bilhões, compatível com os níveis de endividamento ótimos estabelecidos nos livros de finanças. Seus indicadores de lucratividades estão entre os mais altos do mundo. No ano passado, ela foi uma das que pagaram mais dividendos no setor. Por que, então, o preço de suas ações é relativamente menor do que o de suas concorrentes? É fácil responder, não?
Outra alegação recorrente é que cessariam os pagamentos de dividendos ao governo, já que este não seria mais acionista. Ora, é sempre bom lembrar que governos não existem para investir o nosso dinheiro no mercado de ações ou em empresas, mesmo que mantenham esse investimento no longo prazo, como no caso da Petrobras. Além disso, a Petrobras seria vendida, e não doada. Embora seja óbvio, cabe explicar que vender um ativo implica receber um pagamento por seu valor justo, que, por sua vez, reflete todas as perspectivas em relação à empresa, incluindo quanto se acredita que ela pagará de dividendos, quanto o preço do petróleo irá subir ou cair, a produção aumentar ou diminuir etc. Não existe o “preço de bananas”. A Petrobras não será vendida por um valor abaixo do que ela vale. Por fim, vale salientar que não se privatiza para fazer caixa, mas para tirar o Estado de onde não deve estar.
É preciso caminhar para o futuro e abandonar a falsa identificação entre interesse da Petrobras e interesse nacional. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa — e o interesse preponderante deve ser sempre o dos consumidores.
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor. Instagram: @ubiratanjorgeiorio
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