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Assim que acaba a eleição, começa uma segunda disputa — longe dos holofotes da imprensa e do olhar dos eleitores
Encerrada a eleição de outubro, os deputados federais eleitos iniciam uma segunda disputa — longe das urnas, dos holofotes da imprensa e do olhar dos eleitores. Trata-se da briga pelos gabinetes do Congresso Nacional. Diferentemente do Senado, onde não há regras definidas e a negociação se dá diretamente entre o parlamentar que deixa a Casa e o novato, uma acirrada queda de braço acontece na Câmara dos Deputados a cada quatro anos.
O desejo de antigos e novos parlamentares é instalar sua equipe de assessores no Anexo 4 da Câmara, onde os gabinetes são maiores (cerca de 40 metros quadrados), com duas salas e várias janelas, banheiros individuais e cinco elevadores privativos no hall do prédio. O espaço, contudo, só é acessível aos veteranos. Aos novatos, restam apenas queixas às regras regimentais da Casa, que se repetem a cada legislatura.
Essas regras criam verdadeiras “castas”. Deputados reeleitos, por exemplo, podem fazer trocas entre si. E filhos e cônjuges têm direito a herdar os gabinetes dos familiares. Novata em 2018, Luisa Canziani (PSD-PR) ficou com o gabinete do pai, Alex Canziani (PTB-PR), que não conseguiu uma vaga no Senado em 2018. Soraya Manato (PTB-ES) ocupou o gabinete do marido, Carlos Manato, depois de ele fracassar na disputa pelo governo do Espírito Santo naquele ano. As duas parlamentares estão acomodadas no tão sonhado Anexo 4.
Aécio Neves (PSDB-MG) e Arlindo Chinaglia (PT-SP) são de uma casta ainda mais privilegiada. Ambos ocupam os melhores gabinetes, porque foram ex-presidentes da Câmara, exceção prevista no regimento. Eles são os únicos entre os 513 deputados que conseguiram salas no edifício principal da Câmara nas eleições de 2018. O prédio é destinado aos parlamentares que compõem as lideranças partidárias, além do presidente, Arthur Lira (PP-AL), e do vice. A localização permite acessar o plenário da Câmara e o corredor que leva ao Senado em menos de cinco minutos.
Além de filhos, irmãos e cônjuges de deputados que deixam o mandato e dos reeleitos, têm privilégios deputadas, parlamentares com alguma deficiência, congressistas acima de 60 anos ou ex-deputados que tenham sido eleitos novamente. Depois que os parlamentares com alguma prioridade regimental são contemplados, há um sorteio para a distribuição das salas remanescentes.
Na eleição de 2018, 154 deputados participaram do sorteio, enquanto 359 (quase 70%) ficaram de fora. O deputado Paulo Martins (PL-PR), pré-candidato ao Senado, explicou que o processo é conduzido pela Primeira Secretaria da Casa. “No meu caso, o sorteio ocorreu por meio do YouTube”, disse Martins, eleito em 2018 pelo Partido Social Cristão. Como os demais, ele não teve muita escolha.
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A preferência pelo Anexo 4 não é uma unanimidade. Apesar de estar alocado em um gabinete no 7° andar do bloco, o deputado Coronel Tadeu (PL-SP) se queixa da distância até o plenário e às comissões da Câmara. Para chegar até o Anexo 2, onde ficam as comissões, e seguir em direção ao plenário, os parlamentares têm de caminhar por um túnel subterrâneo de quase 120 metros, cuja única ventilação vem da entrada principal. Sem janelas nem quadros nas paredes aveludadas cor mostarda, o trajeto claustrofóbico até as comissões dura quase dez minutos. Em dias movimentados, é comum esbarrar com assessores ou funcionários transitando pelo túnel com um carrinho cheio de objetos que às vezes caem no carpete.
Para facilitar a vida dos parlamentares e dos servidores durante o percurso, que conta com algumas subidas, há esteiras no túnel (semelhantes às de metrô) que ajudam os deputados a se locomoverem mais rápido de um anexo para o outro. Quem chega ao Anexo 4, depara-se com um hall e dez elevadores, sendo cinco deles exclusivos para parlamentares circularem pelos dez andares do edifício. Em cada um, há os chamados “ascensoristas”, profissionais contratados pela Câmara unicamente para apertar botões para os deputados.
Caso seja reeleito, o deputado Tadeu pretendo pleitear uma vaga no Anexo 3. “Tenho uma certa deficiência para andar, em função de artroses no joelho e no tornozelo”, disse. No Anexo 3, a caminhada até o plenário da Casa e o salão verde (onde ocorrem a maior parte das entrevistas e cafezinhos com jornalistas) demora pouco mais de cinco minutos. O tempo percorrido até as comissões é mais curto ainda, visto que os gabinetes são localizados praticamente no mesmo corredor das comissões mais importantes da Casa, como a de Constituição e Justiça e de Cidadania. Além disso, os congressistas alocados nesse espaço têm fácil acesso a uma das entradas da Câmara e gabinetes considerados simbólicos, como o de número 482, que pertenceu ao presidente Jair Bolsonaro.
O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-AL) contou que costumava haver disputas nos bastidores da Casa por essa sala, a exemplo do que ocorria com o gabinete que Lula ocupou no Anexo 4 entre 1987 e 1991. Preferido por parlamentares de esquerda, acabou nas mãos de Joice Hasselmann (PSDB-SP). “A deputada fez um culto ecumênico para ‘limpar o ambiente’”, lembrou Cavalcante. “Eu participei da cerimônia.” O gabinete de Bolsonaro ficou com a deputada Carla Zambelli (PL-SP).
O descontentamento com todas essas regras chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018
Zambelli se disse contente com o local, apesar da falta de elevadores e de as salas serem um pouco menores que as do Anexo 4. “Mantive a decoração original de quando Bolsonaro era parlamentar e pretendo permanecer neste gabinete enquanto eu for deputada”, afirmou. No Anexo 3, parlamentares precisam se contentar com pouco mais de 30 metros quadrados, duas salas e uma janela — alguns gabinetes improvisam uma divisória, para criar mais um ambiente.
Em 2019, a insatisfação de deputados com a “desigualdade” do Anexo 3 fez com que parlamentares pressionassem a administração da Câmara a gastar cerca de R$ 20 milhões para a instalação de toaletes privativos. A previsão é que a obra fique pronta até o fim de 2023.
Para justificar a gastança, a Câmara informou que o prédio do Anexo 3, erguido na década de 1970, “nunca passou por reformas gerais e que suas instalações estão obsoletas”. Segundo a Casa, não se trata apenas de erguer banheiros novos, porque há “necessidade comprovada” de trocar sistemas hidráulico, elétrico e de ar-condicionado e de adequar o prédio a normas de acessibilidade, segurança e de combate a incêndio e pânico, “com a melhoria das rotas de fuga”.
O descontentamento com todas essas regras chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018. Naquele ano, o deputado licenciado Marcelo Calero (PSD-RJ) entrou com uma ação no STF interpelando as normas. O parlamentar queria que o sorteio eliminasse os critérios que privilegiam parentes na política. “O que há de mais profundo nessa discussão é o espírito oligárquico no sistema político brasileiro, que se reflete em uma norma que é uma aberração jurídica sob todos os pontos de vista”, argumentou Calero. Contudo, o então presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, negou o pedido e sustentou que a decisão final é da Câmara.
Neste ano eleitoral, o ímpeto dos deputados novatos vai esbarrar novamente em velhos hábitos dos políticos.
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