terça-feira, 7 de dezembro de 2021

'A democracia, as redes sociais e as ruas', por Alex Fiuza de Mello

 

Os “homens livres” atenienses constituíam uma espécie de classe única de “iguais” (ou “pares”), com os mesmos direitos políticos individuais (de votar e ser votado) mutuamente reconhecidos, mas cuja condição de pertencimento estava baseada na posse de propriedade (não importa se grande ou pequena), que conferia legitimidade ao exercício pleno da cidadania – excluídos da “ágora”, em consequência, as mulheres, os jovens e os escravos (isto é, a grande maioria da população).

Foi esta forma de governo, pautada na extensão dos direitos de cidadania, que inspirou os movimentos sociais, a partir do século XIX – em plena consolidação da era moderna –, a reivindicar maior participação das classes populares na vida política nacional, mesmo ante a impossibilidade de adoção dos mesmos procedimentos de “governo direto” da longínqua fórmula ateniense. E por três razões básicas: 1) a complexidade e heterogeneidade da dinâmica social moderna; 2) o tamanho do contingente populacional envolvido; 3) as exigências técnicas e de dedicação exclusiva à tarefa de governança num contexto com tais características. Enquanto na Grécia Antiga eram tão somente algumas centenas de homens que se reuniam em praça pública para argumentar e decidir, nas sociedades urbanas industrializadas passaram a ser centenas de milhares ou milhões, inviabilizando a adoção artificial do formato do antigo modelo. Nasce, assim, no lugar da “democracia direta”, a moderna democracia representativa.

Toda a evolução do modelo democrático, na contemporaneidade (a partir do século XX), esteve fincada na premissa da representação política. Nesse cenário, segundo princípios e regras próprias, admite-se que o poder emana do povo (único soberano!), mas – por impedimentos técnicos e objetivos – é exercido por representantes eleitos, que devem aos eleitores(donatários dos mandatos), ao fim e ao cabo, a prestação de contas de seus atos e decisões – pelo que são julgados e reavaliados a cada calendário eleitoral.

Os governantes, portanto, sob a ótica da perspectiva democrática, não podem – não devem! – se substituir ao soberano: o povo. É sempre a “vontade do povo”, expressa por maioria – a “vontade geral”, em termos rousseaunianos –, que deve (deveria!) prevalecer em todas as arenas decisórias do Estado – e não a dos próprios representantes ou dos pequenos grupos ou corporações. O poder delegado, em nenhuma hipótese, pode ser usurpado por desvio de finalidade. O seu exercício indireto, por representantes eleitos, fundamenta-se, unicamente, na impossibilidade objetiva da execução direta da função governativa pelo conjunto dos cidadãos, mais voltados, em suas esferas privadas, à árdua tarefa da sobrevivência e da produção material.

A “democracia representativa” determina, com base em regras e procedimentos, quais são os indivíduos autorizados a tomar, em nome da coletividade, as decisões vinculatórias para o conjunto da sociedade, e à base de que condições, mantendo-se a prerrogativa da prevalência do interesse da maioria como critério definidor em última instância. Raramente existe, aqui, unanimidade – fenômeno muito mais possível em grupos mais restritos e homogêneos. É fundamental, assim, que aqueles chamados a decidir em nome do conjunto, façam-no diante de alternativas factíveis e justificáveis de escolha, auscultando sempre, e na medida do possível, o sentimento majoritário dos representados (o povo), em cada oportunidade.

Fato é que, no seio desse tipo de sociedade, complexo e pluralista, que caracteriza o mundo contemporâneo, ante a heterogeneidade e pulverização de situações e a fragmentação e atomização dos indivíduos/cidadãos, a formação da “opinião pública”, por recursos induzidos, passa a representar fator decisivo no jogo político, assumindo os meios de informação e comunicação o papel preponderante na disseminação de valores e ideias e na interpretação dos fatos, com influência direta e decisiva na cimentação das preferências populares. A “ágora”, dessa feita, alarga-se por mecanismos indiretos; a arena de debate se amplia; a hegemonia das ideias (plantadas por grupos comunicativos em disputa) se sobrepõe, progressivamente, à dominação pela força. Ingressa o modelo democrático representativo na “era da comunicação e da informação” (segunda metade do século XX), agora sob o comando dos novos e proeminentes atores da cena política hodierna: os donos dos aparelhos ideológicos, modeladores de crenças, valores culturais e mentalidades.

Ao longo do tempo, muda-se a forma, as estratégias e as táticas de fazer política; mas ainda permanece em vigência a cláusula pétrea, por excelência, da democracia: é no conjunto da população (na “vontade geral”) que repousa o fundamento último de toda soberania. O desafio passa a ser a conquista, pelo convencimento, da maioria – e não a sua substituição ou negação. Nessa “sociedade aberta”, em razão do pluralismo presente na correlação de forças, todos passam a ratificar, por razões de princípio ou de pragmatismo, a “fórmula democrática” – inclusive aqueles que anteriormente a negavam sob o rótulo de “valor burguês” –, admitindo se (por convicção ou oportunismo) que a vontade expressa da maioria deve, sempre, ser respeitada e legitimada por seus representantes. Cabe, agora, aos “intelectuais orgânicos” das várias colorações o desafio de tal façanha. Institui-se a “guerra de posição” como gênero prevalecente de disputa, importando, em plena “sociedade do espetáculo”, a ocupação de “trincheiras” – estruturas e espaços de influência cultural e ideológica (meios de comunicação, escolas e universidades, ambientes artísticos, etc.) – como estratégia por excelência para o exercício desse convencimento – ou o atingimento da hegemonia.

Na moldura desse quadro, os “representantes” políticos (ou candidatos a), sempre sujeitos ao sufrágio popular, tornam-se particularmente sensíveis aos apelos e influência dos meios de comunicação de massa. Têm os seus sensores ligados, diuturnamente, às “tendências da opinião pública”, filtradas e expressas, de forma indireta, por meio desses veículos – e sob o seu controle.

Não por acaso os grandes grupos de comunicação passaram a ser designados, sociologicamente, como o “quarto poder”. E não sem propósito a eles têm recorrido e se subordinado, costumeiramente, nas últimas décadas, todos os candidatos ao poder de Estado, estabelecendo se, como resultado dessa dinâmica, um sistema de compadrio (e de compensações) entre esses atores, com o distanciamento progressivo dos bastidores e arenas decisórias do sistema político de seus únicos e legítimos avalistas: o povo.

Acostumou-se, nessa ordem de coisas, a fazer política por meio de conchavos. Diluíram-se as ruas e os plebiscitos. De fim, a “vontade do povo”, forjada como “opinião pública”, foi reduzida a simples “meio” para eleger e legitimar falsos representantes. As restritas “ágoras” modernas (parlamentos, convenções partidárias, etc.), em sua rotina distanciadas da interlocução popular,

foram metamorfoseadas em meros picadeiros de pantomimas para iludir o público. De soberano, o povo ficou reduzido a súdito, com direito de se manifestar apenas de tempos em tempos e unicamente para sancionar os seus mandatários (“senhores”), sem outras opções além daquelas previamente relacionadas em cardápios controlados por caciques de partidos. A “democracia” (poder do povo) foi se dissolvendo.

Mas eis que, inesperadamente, graças a um novo ciclo da revolução tecnológica – a mesma que vem alterando a ordem e a mecânica social no transitar da modernidade –, o establishment parece entrar em crise. Surgem, com a internet, as redes sociais. Multiplicam-se e se diversificam as fontes de informação e comunicação. Vai perdendo hegemonia a grande mídia, que concentrava, até recentemente, as rédeas dos artifícios de convencimento. Emergem redes mais plurais, capilarizadas e personalizadas de informação, com a novidade da possibilidade da interatividade em tempo real. O povo redescobre o seu papel ativo na “ágora”. Mobiliza-se, agora, com mais autonomia, instantaneidade e liberdade de expressão (sem os filtros dos donos do poder). Aprende a refletir, a avaliar, a decidir e a se comunicar. Reassume, paulatinamente, a função de protagonista da cena política. Renasce a possibilidade da fórmula da “democracia direta”, ainda que em nova modelagem. Reconfigura-se a “ágora”, em contornos virtuais. As novas redes lançam o povo às ruas. A população volta a ensaiar o exercício pleno da soberania; a reivindicar, em tempo real, o cumprimento de sua vontade majoritária pelos representantes eleitos. A política entra em ebulição.

Dirão alguns, nesse “tsunami” em movimento: e as fake News? Não estaria, a democracia, por essas ameaçada?

Mas quando não as houve? – caberia a melhor resposta. Ou não se esteve, sempre, sob o seu reinado enquanto dominaram os grandes grupos de comunicação, com a sua notória parcialidade e manipulação (e ainda com o agravamento da ausência de contraditório)?

Nada há de novo, portanto, sob esse prisma, debaixo do sol. Tão somente uma luz e um rumor no fim do túnel, anunciando que o povo retornou às ruas! Que os pronunciamentos e as decisões dos governantes voltaram a ser monitorados e julgados diretamente – e em tempo real – pela massa de eleitores. Que graças a uma maior transparência, será reduzida a impunidade dos mandatos desafinados com o interesse da maioria. Que a democracia, finalmente, ganhou um novo combustível e uma nova esperança. Que a “Ágora” – depois de tantos séculos – parece renascer!

Sim, o povo na rua nunca foi “ameaça” à democracia, senão a sua mais vigorosa e esplêndida manifestação. Afirmá-lo em contrário – por ignorância ou arrogância intelectualóide – é um contrassenso, um contrabando ideológico, uma bufonaria ou um “ato falho” autoritário.

O mundo mudou. E, com ele, a dinâmica da democracia.

Que fique aqui o alerta – enquanto há tempo – aos representantes da “velha política”!

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

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