sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

'A defesa da autonomia médica é essencial', por José Geraldo Barbosa Jr. e José Luiz Bevilacqua

 

Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock


Sem nenhum embasamento técnico, representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário passaram a opinar sobre formas de tratamento e prevenção da covid-19


Aautonomia é a faculdade que permite ao médico tomar decisões de maneira consciente, independente e livre, de acordo com seus padrões de conduta moral e com o código de ética estabelecido, sem que haja influência de outros aspectos exteriores (econômicos, políticos etc).

Decorrente da autonomia, a responsabilidade profissional está implícita na atividade médica, assim como o dever de fazer o bem e de nunca prejudicar — primum non nocere — desde o primeiro Código de Ética Médica, como é considerado o Juramento de Hipócrates, passando pela Declaração de Helsinki, da Associação Médica Mundial, e presente nos Códigos de Ética brasileiros.

O Código de Ética Médica, cuja versão atual entrou em vigor em 2018, garante uma série de direitos, entre os quais destacamos o de exercer a medicina sem ser discriminado por questões de qualquer natureza e o de indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente. Há também 117 vedações, cujo não cumprimento sujeita o médico à punição, que pode ir desde advertência confidencial em aviso reservado até cassação do exercício profissional.

Como ressaltado no próprio Código de Ética Médica, ao indicar o que considera o procedimento adequado ao paciente, o médico deve se basear no conhecimento científico disponível. Porém, o exercício da medicina deve se pautar também no tirocínio, isto é, na prática adquirida no decorrer do treinamento médico, sob a supervisão de médicos mais experientes, e na experiência adquirida no atendimento dos pacientes.

Portanto, a autonomia se justifica na medida em que o médico visa sempre ao melhor para o seu paciente, baseado em sua experiência e no conhecimento científico disponível, e assume a responsabilidade pelas condutas diagnósticas e terapêuticas propostas.

As recentes vacinas contra a covid-19 tiveram o seu valor, mas não se mostraram eficazes em conter a disseminação da doença

Nos últimos anos, com o aumento da disponibilidade de informações de saúde proporcionado pela internet, vem ocorrendo um fenômeno de substituição da consulta aos médicos pela consulta aos novos “experts” da internet. No entanto, muitas vezes esses profissionais não têm nenhuma formação na área da saúde e outros, talvez até pior, são profissionais que não têm em seu escopo de atuação o diagnóstico e o tratamento de doenças. 

Nesses quase dois anos de pandemia de covid-19, esse cenário se acentuou. Sem nenhum embasamento técnico, representantes do povo, do Poder Executivo, principalmente estaduais e municipais, passando pelo Poder Legislativo e até detentores de cargos no Judiciário, que não possuem nenhuma representatividade popular, passaram a opinar sobre formas de tratamento e prevenção da covid-19.

Como, por exemplo, no caso do Supremo Tribunal Federal, que instituiu o chamado passaporte vacinal, ou sanitário, como querem alguns, sem absolutamente nenhum embasamento médico. As recentes vacinas contra a covid-19 tiveram o seu valor, principalmente em faixas etárias mais elevadas. No entanto, não se mostraram eficazes em conter a disseminação da doença, pessoa a pessoa, não se prestando ao fim a que se propõem. Esse foi mais um assunto em que a opinião de médicos foi simplesmente desconsiderada.  

Enfraquecimento da autonomia médica em autarquias

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem por finalidade promover a proteção da saúde da população e tem a prerrogativa de aprovar a indicação de vacinas, como ocorreu recentemente com a controversa autorização da vacina da Pfizer contra covid-19 para aplicação em crianças de 5 a 11 anos de idade. Contudo, a agência regulatória possui apenas dois médicos entre os cinco componentes de sua Diretoria Colegiada. 

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), responsável por regular o mercado de planos privados de saúde no Brasil, não contava com médicos em sua Diretoria Colegiada até o fim deste ano — dois médicos deverão compor a diretoria depois da aprovação de suas indicações pelo Senado Federal. Esses são dois exemplos de que as políticas de saúde no Brasil estão sendo definidas cada vez menos por médicos, o que pode ser um fator de enfraquecimento da autonomia médica.

O Conselho Federal de Medicina, autarquia responsável por fiscalizar e normatizar a prática médica no Brasil, manifestou em diversas oportunidades e fóruns a necessidade de garantir a autonomia médica no diagnóstico e, principalmente, na escolha do tratamento de seus pacientes — no caso da covid-19 não havia muitas opções. A sociedade deveria lutar pela manutenção dessa autonomia. Esse princípio permite que, diante das incertezas, o médico possa envidar todos os seus esforços e sua experiência, aliados às melhores evidências científicas disponíveis, para atingir o objetivo mais importante de sua existência: a saúde e a vida de seu paciente.


José Geraldo Barbosa Jr. é médico com atuação na área de Gestão de Valor em Saúde

José Luiz B. Bevilacqua é médico, cirurgião oncológico e mastologista, doutor em Cirurgia pela Faculdade de Medicina da USP

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