sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Theodore Dalrymple: “As universidades fazem lavagem cerebral”

 

O psiquiatra Theodore Dalrymple | Foto: Divulgação


Para o psiquiatra britânico Anthony Daniels, enquanto o Estado fomenta o paternalismo, a liberdade do indivíduo depende de seu grau de ação e participação na sociedade


Theodore Dalrymple é apenas um dos pseudônimos que o psiquiatra britânico Anthony Daniels utiliza para escrever suas obras e seus artigos. Colunista de Oeste e autor de mais de 30 livros sobre os mais diversos temas, Daniels atuou profissionalmente na periferia de grandes cidades, em prisões e países como o Zimbábue e a Tanzânia, além de outros do Leste Europeu e da América Latina. A partir de sua experiência como médico, tornou-se um observador sagaz do comportamento humano. Seu nome é referência quando o assunto é o pensamento conservador contemporâneo. 

Em entrevista à Revista Oeste, o médico conversou sobre as reações da população diante da pandemia de covid-19, as políticas públicas adotadas para conter a doença e avaliou possíveis desdobramentos da crise sanitária. Para o psiquiatra, as mudanças nas relações de trabalho podem aumentar ainda mais a disparidade social. “A segregação social será ainda pior, com mais privilégios para alguns”, disse. Avesso ao conceito de Estado de bem-estar social, ele acredita que programas assistenciais “criam uma mentalidade dependente” e iludem o cidadão. “O Estado afirma que cuida de você, quando na verdade nada mais faz do que cumprir com suas metas sociais.”

Direto da França, onde mora atualmente, Daniels conversou por telefone com a reportagem de Oeste. Confira os principais trechos da entrevista. 

O mundo vive há dois anos os efeitos da pandemia de covid-19. Como o senhor avalia as reações da população, principalmente dos mais jovens, diante da crise sanitária?

A maior parte das pessoas nunca havia atravessado uma catástrofe de larga escala. Então, não havia referências nem algum evento para efeito de comparação. Os jovens foram muito impactados na pandemia justamente porque, dada a pouca idade, não têm uma bagagem mais ampla que lhes permita relativizar esses eventos e entender que essas coisas são momentâneas dentro de um processo histórico maior. Portanto, a reação emocional deles acaba sendo potencializada. Os jovens, hoje, se sentem pressionados por temas como aquecimento global e temem a extinção do planeta. Veja o caso da Greta Thumberg. Ela disse algo como: ‘Vocês roubaram a minha infância’. Isso é uma infantilidade. Ela é uma menina mimada que não tem ideia sobre o sofrimento humano e o que realmente acontece no mundo.

O mundo pós-pandemia será diferente?

As coisas permanecerão iguais, só que piores (risos). Muitas pessoas ficarão relutantes em voltar ao trabalho. Quem em São Paulo quer enfrentar o trânsito todos os dias? Mas os pobres terão de continuar como antes, voltar ao trabalho, se deslocar. Muitos trabalhadores foram fundamentais nesse período de isolamento. São pessoas com empregos humildes que trabalham em supermercados, são entregadores, motoristas, eles continuaram a trabalhar. Sem eles, seria impossível sobreviver à pandemia. No entanto, outros poderão trabalhar de casa. Se esse for o caso, a segregação social será ainda pior, com mais privilégios para alguns. 

As políticas públicas adotadas pelos governantes para conter os efeitos da pandemia foram adequadas?

Tenho alguma simpatia pelos governantes. Ainda que a maior parte das políticas públicas tenha se tornado promotora de instabilidade, a verdade é que, se você está no governo e precisa decidir com urgência, acaba por tomar algumas medidas drásticas. Ainda mais sabendo que, mais à frente, você corre o risco de ser julgado por não ter tomado todas as medidas cabíveis. Nesse sentido, é melhor pecar pelo excesso do que pela falta. O problema é que algumas das medidas tomadas não tinham evidências de que poderiam funcionar. Por exemplo, durante a pandemia, viajei da França para a Holanda para participar de um simpósio. Na Holanda, todas as lojas e restaurantes estavam abertos, enquanto na França estava tudo fechado. Por qual razão as lojas estavam abertas em um país e em outro fechadas? Mas, como todos agiram na ignorância, na verdade não tinha como saber o que iria acontecer.

No Brasil e no mundo, há uma discussão sobre a obrigatoriedade de um passaporte de vacina. O senhor é favorável à vacinação obrigatória?

O que se deve questionar é se quem se vacinou pode transmitir a doença. Se pessoas vacinadas não transmitem a covid, há argumentos a favor da vacinação. No entanto, há um artigo na Lancet dizendo que estar vacinado não impede a transmissão. Se for esse o caso, não vejo por que exigir passaporte da vacina. Mas é claro que o conhecimento científico é mutável. Estou completamente vacinado, mas não quero frequentar lugares com aglomerações. A decisão é minha. Jovens sem problemas de saúde têm menor risco de complicações pela doença. É uma decisão individual. Se pessoas vacinadas transmitem a doença, não há justificativa para obrigá-las a tomar a vacina. 

Recentemente, o senhor publicou um artigo em Oeste que aborda o tema da decadência do Ocidente. Em comparação com a ditadura chinesa, o que está acontecendo com a democracia no Ocidente? 

Com a derrocada da União Soviética, acabaram-se as ideologias políticas. Mas, de fato, o que aconteceu é que elas se desmembraram em ideologias identitárias sobre gênero, sexualidade, feminismo e racismo. Isso tem acontecido muito nas universidades. Eles fazem uma verdadeira lavagem cerebral nos alunos, especialmente na área de humanas. E são pessoas que depois também vão assumir cargos na administração pública. Já os chineses não estão preocupados com essas questões, na medida em que o que acontece lá, em um formato aprendido com os russos, é uma ditadura que não dá espaço para essas discussões. Eles mantiveram a estrutura ditatorial oriunda do período comunista, mas adotaram a economia de livre mercado. A população é livre para trabalhar e ganhar dinheiro, mas não para pensar. Não sei se é sustentável a longo prazo. Mas, certamente do ponto de vista de se tornar rico e poderoso, essa política funcionou e está funcionando. 

No mesmo artigo, o senhor afirma que a China sabe explorar seus interesses nacionais. Por que o Ocidente enfrenta dificuldade para fazer o mesmo?

De certo modo, há ainda uma ressaca da Segunda Guerra Mundial. Qualquer um que fale sobre interesses nacionais pode ser considerado um admirador de Hitler. Até mesmo entre os mais jovens. Eles aprenderam que qualquer discussão que não seja de direitos humanos universais é fascista. 

O senhor aborda o tema da vitimização e da dificuldade do ser humano em assumir responsabilidades na vida em vários de seus livros. Por que esse sentimento é tão presente na sociedade? 

Historicamente, há uma tendência das pessoas ao escapismo individual. Isto é, pode-se dizer que é da natureza humana não querer assumir responsabilidades. No entanto, mais recentemente, quando passamos a pensar em termos sociológicos, antropológicos, econômicos e até mesmo criminológicos, esse movimento vem se atenuando, já que as pessoas estão entendendo que sua liberdade depende diretamente do grau de ação e participação em sociedade. Há, de todo modo, uma parcela da população — em sua maioria oriunda de classes menos abastadas — que é levada a esse tipo de pensamento de dependência, porque não precisa se preocupar com educação nem com aposentadoria ou plano de saúde. É alimentada por benefícios como programas sociais.

A burocracia não se importa de fato com quem você é. O que ela quer são números para apresentar

Em sua obra A Faca Entrou, o senhor aborda, entre outros temas, a questão da vitimização fomentada pelo assistencialismo governamental. Como a atuação do Estado colabora para desencorajar a autonomia individual?  

Acredito que a situação no Brasil seja diferente da que temos no Reino Unido. O Brasil não é um país que eu conheça muito. Mas uma coisa é certa: os programas de seguridade social criam uma mentalidade dependente. Não que eu acredite que membros de algum governo tenham se proposto a — ou mesmo tenham conspirado para — tornar as pessoas dependentes. Não é isso. Mas a verdade é que tudo, de programas de seguridade social a até mesmo divórcios, vem tornando as pessoas dependentes. Tome como exemplo o caso hipotético de uma mulher que se divorciou e tem um filho. Ela diz que não quer ter de assumir também o papel de pai da criança e quer ser independente. O que ela quer dizer com ser independente, contudo, nada mais é que receber um subsídio do governo. Isso alimenta a formação de uma mentalidade dependente. 

O senhor pode explicar melhor como funciona essa mentalidade dependente? 

As pessoas que dependem de programas sociais vivem um duplo jogo de mentira. Elas sabem que, quando lhes dizem que são independentes, porque têm uma casa e uma renda, na verdade, tudo isso não lhes pertence de fato. Tome o exemplo real de uma mulher nessa situação, que, inclusive, tive a oportunidade de visitar. Ela morava em uma casa simples, dada a ela pelo governo. Observei que não cuidava da casa e não limpava o jardim. Quando lhe indaguei a respeito, sua resposta foi que já havia solicitado que o serviço social providenciasse a limpeza. Em resumo, vive-se uma mentira de ambas as partes. O Estado afirma que cuida de você, quando na verdade nada mais faz que cumprir com suas metas sociais. A burocracia não se importa de fato com quem você é enquanto pessoa nem vai cuidar de você como você cuidaria de seu próprio filho. O que a burocracia quer são números para apresentar. Já o cidadão aceita o discurso paternalista, enquanto alimenta uma falsa sensação de autonomia e independência. Como no exemplo que citei, ainda que diga que a casa é do cidadão, na verdade, para ele não é — pertence ao Estado — e, portanto, quem deve cuidar e limpar é o Estado.

O senhor votou a favor do Brexit. Dois anos depois, como está a situação no Reino Unido?

Nem melhor, nem pior. Temos nossos problemas, nossa burocracia infernal. Deixarmos de estar integrados à União Europeia em nada mudou nosso baixo nível educacional, por exemplo. A ideia de sair do grupo, pelo menos na teoria, era muito mais para resgatar nossa autonomia, trazer o controle de volta para o ambiente doméstico. Além disso, acredito que, no longo prazo — provavelmente não estarei vivo para ver —, a União Europeia caminha para uma guerra civil nos moldes da Guerra Civil americana. A ideia política de povos unidos sem algo que de fato os vincule pode ser desastrosa.

Paula Leal, Revista Oeste