CARACAS - A forte reação após as últimas decisões do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) venezuelano — que, na quarta-feira retirou as competências da Assembleia Nacional (AN) e, dois dias antes, a imunidade parlamentar de seus deputados — ganhou mais força um dia depois com a surpreendente crítica da procuradora-geral da Venezuela, Luisa Ortega, muito ligada ao chavismo. Num ato público, ela denunciou inesperadamente uma “ruptura da ordem constitucional” em seu país, o que pode indicar uma fissura dentro do próprio regime. Internamente, parlamentares opositores recorreram à Procuradoria-Geral num pedido de ação judicial contra os sete magistrados da Sala Constitucional do TSJ que emitiram a decisão. O presidente Nicolás Maduro, por sua vez, minimizou o episódio e convocou o Conselho de Segurança para “resolver hoje mesmo o impasse em torno da sentença”.
Foi a primeira vez que Ortega, indicada ao cargo em 2007 e aliada ferrenha do governo, manifestou publicamente uma dissidência ao chavismo:
— Nestas sentenças se evidenciam várias violações da ordem constitucional e o desconhecimento do modelo de Estado consagrado em nossa Constituição, o que constitui uma ruptura da ordem constitucional — denunciou.
Após a declaração da poderosa procuradora-geral, Maduro prometeu dialogar com o Ministério Público, sem fazer menção à controversa decisão do TSJ. O presidente aproveitou um ato oficial para denunciar o que chamou de “uma nova tentativa de impor um golpe de Estado para tomar o poder político” e voltou a negar qualquer ruptura constitucional:
— Há uma controvérsia que deve ser resolvida por meio do diálogo, não com posições extremas nem dando argumento a quem quer intervir na Venezuela — disse a correligionários, atacando os EUA e a Organização dos Estados Americanos (OEA). — Estão desesperados, quase histéricos, enlouquecidos, intervindo em assuntos que são de exclusividade legal dos venezuelanos e venezuelanas.
Na sexta-feira, a OEA e as Nações Unidas intensificaram a pressão internacional contra o governo e pediram uma reavaliação da decisão do Supremo. António Guterres, secretário-geral da ONU, apelou para o restabelecimento do diálogo, sublinhando “a importância de salvaguardar a separação de Poderes e o Estado de direito”. O alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad al-Hussein, também lembrou que “a separação dos Poderes é fundamental para que a democracia funcione”.
— As contínuas restrições aos direitos de ir e vir, de associação, expressão e de protestar pacificamente não só são profundamente preocupantes como contraproducentes num país extremadamente polarizado que sofre uma crise econômica e social — afirmou Zeid, que disse estar atento ao envolvimento regional da OEA.
Mais cedo, o secretário-geral da organização, Luis Almagro, pedira formalmente ao Conselho Permanente para que convoque uma nova reunião emergencial para avaliar a crise política no país, evocando o Artigo 20 da Carta Democrática Interamericana — vinte países apoiaram a convocação. Durante a semana, porém, duas sessões extraordinárias terminaram sem consenso. “As decisões são os últimos golpes com os quais o regime subverte a ordem constitucional do país e acaba com a democracia”, destacou Almagro em nota.
Em Caracas e em várias cidades venezuelanas, manifestantes foram às ruas atendendo a um chamado da oposição — que convocou para hoje um protesto em massa. Mas eles foram recebidos com violência por soldados da Guarda Nacional, que detiveram pelo menos 20 jovens ao longo do dia. Gonzalo Himiob, diretor da ONG Foro Penal, alertou para o aumento da repressão nos próximos dias. Pelo menos dois dos detidos foram levados ao quartel militar de Fuerte Tiuna. Os outros foram liberados.
— Assistimos a um dia de muita violência por parte da Guarda Nacional, inclusive contra estudantes e deputados. E tudo parece indicar que a repressão deve aumentar, porque os protestos espontâneos estão se intensificando, e essa costuma ser a resposta — explicou ao GLOBO.
Em Washington para acompanhar as reuniões na OEA, o líder oposicionista Henrique Capriles aplaudiu a “coragem” da procuradora-geral Luisa Ortega.
— Queremos resolver a crise através de eleições. Não queremos violência.
Mas parte da oposição endureceu ainda mais o discurso, pedindo que as Forças Armadas se posicionem sobre as últimas decisões do TSJ. Uma delas foi María Corina Machado, coordenadora do movimento político Venha Venezuela, que exigiu ao ministro da Defesa, general Padrino López, que anuncie sua posição sobre a denúncia de Luisa Ortega:
“Cidadãos militares, cabe a vocês se pronunciarem: ditadura ou democracia, com o regime ou com a Constituição”, escreveu no Twitter.
Na noite de quarta-feira, a Sala Constitucional do TSJ retirou as competências da Assembleia Nacional — desde 2016 com maioria opositora após 18 anos — e a imunidade parlamentar de seus membros, argumentando que a instituição se encontrava em desacato. A sentença provocou forte reação entre juristas, dirigentes políticos de oposição, membros de ONGs, governos e organismos internacionais.
‘Supremo extrapolou suas funções’
Advogados venezuelanos voltaram a criticar a decisão do Supremo. Gerardo Fernández, professor de Direito Constitucional, disse que a Corte extrapolou suas funções ao emitir a sentença.
— A decisão é uma declaração política sem conteúdo jurídico, que tecnicamente não pode ser equiparada a um julgamento porque usurpa, extrapola e abusa poder. É uma decisão fora de qualquer ordem constitucional, do Estado de Direito e da democracia — afirmou.
Para o advogado Juan Manuel Raffalli, professor da Universidade Católica Andrés Bello, o pronunciamento oficial da procuradora-geral causa graves efeitos.
— Não é uma estratégia e nem admite recuos — afirmou, denunciando o fim da separação de Poderes no país. — Nenhuma interpretação da Constituição pode levar um Poder a assumir a competência do outro. Simples assim.