domingo, 23 de abril de 2017

"Lições da Venezuela", por Eliane Cantanhêde

O Estado de São Paulo


A Venezuela está esfarelando espantosamente aqui ao lado, mas a situação lá não tem a ver com a situação cá e vai enterrando a ideia, ou ameaça, de que o Brasil viraria “uma Venezuela”. Apesar disso, temos muito o que aprender no país vizinho.

Há três enganos quando se olha para a Venezuela e se depara com a fome, o desabastecimento, o descalabro, o ridículo, os tumultos e as mortes: achar que toda essa tragédia é resultado só de Hugo Chávez, que Chávez era um boçal e que a aproximação do Brasil com o regime começou com Lula e o PT.

A tragédia venezuelana vem sendo costurada há décadas, desde quando o país era um dos mais ricos da América do Sul, mas usava perdulariamente os recursos do petróleo e se jogava nos braços dos Estados Unidos. Mesquinha, a elite empresarial se gabava de só tomar água importada. Sentada no petróleo estatal, a burocracia enlameou-se de corrupção e contaminou as instituições. E ninguém cuidou de converter os recursos que jorravam do petróleo em planta industrial, desenvolvimento, justiça social, futuro, enfim.

Chávez foi resultado de tudo isso. Engana-se quem pensa que ele era um tosco, um ignorante. Era um estrategista. Militar, tentou dar um golpe de Estado em 1992, aproveitou os anos de cadeia para aprimorar a leitura e saiu decidido a bombardear o sistema com as armas do próprio sistema. Criou um partido, seduziu as Forças Armadas e aliou-se a setores tradicionais da esquerda para atacar os doentios Executivo, Legislativo e Judiciário na arena da democracia formal e se eleger quatro vezes.

Sobreviveu aos protestos e ao golpe frustrado dos derrotados, mas não ao erro comum aos ditadores: achar que eles não só sabem tudo, como só eles sabem tudo. O projeto de Chávez fazia sentido, mas não resistiu ao próprio Chávez e implodiu dolorosamente com o desqualificado Nicolás Maduro.

A ideia bolivarianista de virar as costas para os Estados Unidos e de frente para a América do Sul significou automaticamente ficar cara a cara com o Brasil e com o então presidente FHC, a quem Chávez chamava de “mi maestro”, e os dois abriram as portas da Venezuela para as empresas brasileiras. O país tinha dinheiro e não produzia nada, o Brasil precisava de dinheiro e produzia de produtos agrícolas a ônibus e aviões.

Um bom casamento, que foi ao auge com o impulso ideológico de Lula e Dilma e se tornou perigosamente incondicional, mesmo quando o regime saiu dos trilhos. Hoje, faltam comida, remédio, emprego e futuro. O Brasil de Temer caiu fora, a Venezuela vive um caos.

O Brasil também convive historicamente com elites gananciosas, excesso de estatismo, desigualdade social cruel e corrupção crônica, mas, ao contrário da Venezuela de ontem e de hoje, tem instituições sólidas, planta industrial, uma das agriculturas mais pujantes do mundo, sociedade complexa e bem informada e adequação ao sistema internacional. Até por isso, o “nós contra eles” nunca vingou com a dimensão que assumiu lá.

Então, o que a Venezuela tem a ver? Afora a questão geoestratégica, temos muito o que observar, pois, mal comparando, o Brasil está num estágio pré-Chávez, com colapso do sistema político, corrupção a céu aberto, empresas privadas absolutamente fora de controle e o desarranjo da máquina pública e das estatais. Detalhe: a PDVSA foi o eixo das grandes guinadas na Venezuela, como a Petrobrás está sendo no Brasil.

Lá, o caos produziu um caos ainda maior e o que mais temos a aprender com a Venezuela é que combater a corrupção é fundamental, mas implodir as instituições e a política não é salvação. Ao contrário, pode ser a perdição. Que aqui não surjam Chávez, Maduros ou qualquer tipo de salvador da Pátria, aproveitando-se da desilusão e da terra arrasada.