sábado, 22 de abril de 2017

Demétrio Magnoli: "Ascensão da Frente Nacional é fruto da dissolução do sonho nacionalista de De Gaulle"

Pascal Rossignol - 17.abr.2017/Reuters
Marine Le Pen, French National Front (FN) political party leader and candidate for French 2017 presidential election, attends a campaign rally in Paris, France, April 17, 2017. REUTERS/Pascal Rossignol ORG XMIT: JES189
A líder do Frente Nacional, Marine Le Pen


Na madrugada da vitória de Trump, Florian Philippot telefonou a Marine Le Pen, celebrando a notícia. "Hoje, os EUA; amanhã, a França", rejubilou-se. 

Horas depois, entrou num carro que o esperava para levá-lo de Paris a Colombey-les-Deux-Églises, a cidadezinha do autoexílio político de Charles de Gaulle entre 1946 e 1958. Em Colombey, o novo ideólogo da Frente Nacional (FN), 35 anos, gay, depositou uma coroa de flores sobre o túmulo do general. O evento não é banal. O neonacionalismo antiglobalização percorre caminhos inesperados, deitando raízes no solo fertilizado pelo material decomposto de antigos movimentos políticos.

De Gaulle acalentava "uma certa ideia da França": a nostalgia da glória e do poder da estrela mais brilhante do Ocidente. Na epopeia da Resistência, o gaullismo tornou-se idêntico ao nacionalismo francês. O general, antifascista e antigermânico ("gosto tanto da Alemanha que prefiro muitas Alemanhas", ironizou no imediato pós-guerra), sonhava com um "renascimento da Europa" fundado num "acordo sincero" entre França e Grã-Bretanha. Pelo acordo, as duas potências perfilariam juntas na defesa de seus impérios –e a "Europa das pátrias" ressurgiria na órbita geopolítica de uma França avessa à influência soviética. A ascensão da FN é um fruto tardio da dissolução do sonho gaullista.

A história pregou peças sucessivas em De Gaulle. Os impérios coloniais evaporaram. O "renascimento da Europa" apoiou-se numa aliança da França com a Alemanha. No lugar da "Europa das pátrias", emergiu o projeto supranacional que hoje se chama União Europeia. Os gaullistas, agrupados na RPR e, depois, no atual partido Os Republicanos, adaptaram-se ao internacionalismo europeísta –ou seja, ao conceito de soberania compartilhada, que atingiu um clímax com a união monetária. O Philippot que peregrina a Colombey almeja restaurar, ao redor da FN, o nacionalismo gaullista original.

O moderno nacionalismo francês é anterior a De Gaulle. Suas raízes encontram-se em 1899, na acre polêmica do caso Dreyfus, quando monarquistas católicos organizaram-se na Action Française para exigir a condenação do oficial militar judeu Alfred Dreyfus, acusado de traição à pátria num processo envenenado pelo antissemitismo. No entre-guerras, o movimento deslizou rumo ao fascismo e, na hora da ocupação alemã, ofereceu apoio ao regime colaboracionista de Vichy. A FN herdou a tradição da Action Française.

Fundado em 1972 por Jean-Marie Le Pen, um veterano das guerras coloniais e um saudosista de Vichy, o partido reuniu ex-colaboracionistas, tradicionalistas católicos e fanáticos antissemitas. Contudo, desde 2011, com a ascensão de Marine, filha do fundador, o partido ultranacionalista experimenta uma reinvenção ideológica de fundo.

Jean-Marie foi expulso da FN em 2015. Três anos antes, Philippot assumira a vice-presidência do partido e a função de principal estrategista de Marine. Certa vez, Jean-Marie definiu a homossexualidade como "anomalia biológica e social".

Philippot, pelo contrário, reagiu a artigos extremistas que o classificavam como líder de um "lobby gay na FN" denunciando os "determinismos" da "extrema direita" e estabelecendo paralelos com os alarmes contra o "lobby judeu" tão característicos dos anos 1930. O seu partido é nativista, antiamericano, anti-União Europeia, xenófobo e islamofóbico –mas não antissemita ou homofóbico.

A análise política convencional assegura que a FN mudou sua máscara, conservando sua alma. O equívoco minimiza o perigo representado pelo partido de Marine. A candidata presidencial francesa, favorita de Putin e Trump, empenha-se em recuperar o estandarte nacionalista enterrado junto com De Gaulle no cemitério de Colombey. Por isso, é um risco à União Europeia muito maior que as correntes periféricas de nostálgicos do marechal Pétain.