domingo, 2 de abril de 2017

"Carvão na veia", por Dorrit Harazim

O Globo

Nada supera a promessa de futuro retrógrado do decreto ao qual Donald Trump deu o nome de Independência Energética


E no 70º dia, ele criou a treva. Ele, no caso, é o presidente dos Estados Unidos.

Esta semana Donald Trump conseguiu superar William Henry Harrison, nono ocupante da Casa Branca (1841), como tendo o pior desempenho da História em início de mandato. 

Uma marca e tanto, considerando-se que Harrison morreu de pneumonia um mês depois de desfilar a cavalo sem chapéu nem capote no dia glacial da posse.

É hábito conceder uma trégua de cem dias a todo novo governante antes de formular uma primeira avaliação do funcionamento das mudanças na engrenagem do poder. A presidência Trump, porém, tem se revelado tão atípica, convulsionada e acelerada que acaba provocando duas sensações opostas. De um lado, a de que ele está no poder há bem mais do que cem dias, tamanhos foram os estragos já causados ou enunciados. De outro lado, a impressão de que o homem sequer ainda tomou realmente posse como 45º chefe da nação — se é que algum dia o fará em moldes menos estridentes com as instituições democráticas.

Sua popularidade oscila entre o índice anêmico de 36% de aprovação nacional e os mirabolantes 93% de confiança que a National Association of Manufacturers (14 mil empresas, 12 milhões de empregos) lhe devota. Segundo entendidos, isso refletiria a percepção econômica na era Trump: pesquisas e índices de soft data apontam confiança, ao contrário dos chamados hard data de atividade econômica real (consumo).

O problema maior da jovem presidência é que nenhum dos sucessivos imbróglios consegue ser resolvido ou colocado de lado. Ao contrário, vão se acumulando e encravando num cipoal de fios desencapados. A segunda versão do decreto sobre imigração bloqueado pela Justiça não desencrua. O fracasso da primeira tentativa de derrubar o Obamacare, a odiada reforma da saúde implantada pelo seu antecessor, tirou-lhe o prumo. “Saúde é tema complexo”, chegou a admitir.

Ficou amuado, avisou que não mexeria mais no assunto e deixou confusos os cidadãos que tem a responsabilidade de liderar. Entrementes voltou atrás. “Será coisa simples”, garantiu no dia seguinte, com a convicção de um vendedor ambulante.

Também entrementes nomeou assessora oficial não remunerada a filha mais velha, Ivanka, que durante a campanha descartara a hipótese de vir a ocupar qualquer função na Casa Branca do pai. A empresária agora sujeita às normas aplicadas a funcionários federais passa a ocupar um gabinete na Ala Oeste e tem acesso a material confidencial do governo.

Ao lado do marido, Jared Kushner, o mais influente dos assessores especiais do presidente, Ivanka forma um núcleo de poder familiar que a democracia americana pensou ter banido desde os tempos em que o presidente John F. Kennedy nomeou para procurador-geral o irmão Robert.

Nada, porém, supera a promessa de futuro retrógrado do decreto ao qual Trump deu o nome de Independência Energética, assinado esta semana. O evento, que levou às lágrimas mineiros de carvão convidados para a cerimônia, é cruel por enganoso, e constrangedor por colocar os Estados Unidos na rabeira do curso de sua própria história ambiental.

Recentemente, a revista “Time” relembrou uma capa da década de 1960, na qual retratara a “implacável degradação de um continente outrora virgem”. A poluição do ar havia causado 400 mortes em Nova York em apenas um ano, o oxigênio começara a sumir no centro das águas do Lago Erie, cientistas anunciavam a relação entre emissões de gás carbono e deformações em recém-nascidos, o Rio Potomac da capital fedia. O mundo acordava para o planeta que ocupava.

O presidente que ocupava a Casa Branca também. Apesar de ter problemas de sobra com o atoleiro da guerra no Vietnã, Richard Nixon não apenas criou a Agencia de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) como elencou o tema como prioridade nacional em 1970:

“É agora ou nunca, literalmente”, comunicou à nação em seu discurso sobre o estado da União. “A grande questão é saber se vamos capitular ou se vamos fazer as pazes com a natureza e começar a reparar os estragos que causamos ao ar, à Terra e às nossas águas. Restaurar a natureza a seu estado natural é uma causa que ultrapassa partidos e facções. Torna-se uma causa comum a todos neste país...”

Enviou uma dúzia de instruções ao Congresso, fez 23 recomendações para a regulamentação de problemas específicos e estimou por alto o custo do saneamento geral em US$ 100 bilhões. Foi o pontapé para o país iniciar a lenta jornada que desembocou em 2015 na promoção, junto com a China (os dois maiores poluidores mundiais), do festejado Acordo de Paris sobre redução de emissões de gases de efeito estufa, assinado por 195 nações.

A depender de Donald Trump, tudo isso pertence ao passado. “No que se refere à mudança climática”, avisou o novo diretor de Orçamento da Casa Branca, Mick Mulvaney, “o presidente foi muito claro: não vamos mais gastar dinheiro com isso. Consideramos que seria um desperdício”.

O decreto de Trump promete ressuscitar a cambaleante (e poluente) indústria do carvão, e devolver aos mineiros milhares de postos de trabalho fechados. Só que esse setor da economia nada mais tem a ver com os tempos da balada “Coal Miner’s Daughter”, de Loretta Lynn. Ele vem sendo substituído por gás natural e energia renovável, e sua mão de obra pela mecanização. Engenheiros já projetam gigantescas escavadeiras autodirigíveis que dispensam até mesmo operadores à distancia. Ademais, os Estados Unidos não importam carvão.

A canetada ambiental de Trump desmantela o conjunto de regulamentos que compunham o Plano de Energia Limpa de seu antecessor e elimina vários decretos de combate a mudanças climáticas assinados por Obama. Para sorte do planeta, sequer as grandes corporações mais poluidoras quiseram se alinhar.

A ExxonMobil, a maior petroleira mundial, atualmente sob investigação por ter escamoteado dados sobre danos ambientais, exortou Trump a cumprir o Acordo de Paris. Alguém deveria lhe dar um exemplar de “Germinal”, de Émile Zola.