quarta-feira, 1 de abril de 2015

"‘Nos tempos das leniências’ não é um filme do John Ford", por Domingos Oliveira

O Globo

A democracia tem defeitos. É apenas a melhor organização social que o homem jamais inventou. Perfeito é o teatro



Gosto da roleta, eu. Das poucas oportunidades que tive de ir ao cassino, fiz assim: troco em fichas tudo o que posso perder e, passando pelo primeiro pano verde do caminho, ponho no preto ou vermelho metade das fichas que comprei. Para ver se Deus está me protegendo naquele dia. Com esse espírito inicio minha primeira crônica nesse jornal.

No Brasil surreal, a presidenta lembra que a corrupção é uma senhora idosa, tipo Blanche DuBois. Que nunca antes tinha sido incomodada. Agora suas falcatruas são publicadas num “Guinness” diário de imprensa. O que se conclui daí é que estamos vivendo numa democracia plena! Boa, Dilma! Porém inútil. A política brasileira falha inexoravelmente. É fiel a si mesma, não funciona porque não funciona. Verdade que ninguém nos prometeu um jardim de rosas. A democracia tem defeitos. É apenas a melhor organização social que o homem jamais inventou. Perfeito é apenas o teatro. Ibsen, paradoxando há 133 anos: 

“Quem é a maioria? Se pensarmos nesta cidade, no país ou no mundo inteiro, veremos com clareza que os imbecis formam nele uma maioria esmagadora... E mesmo que o diabo queira, senhores, o direito não pertence à imbecilidade, pertence à inteligência! A única verdade que interessa é a que foi descoberta dentro de cada um, a única Revolução consequente é a do espírito!” (“O Inimigo do Povo”).

Quem entra na política brasileira contrai, por infecção palaciana, a amnésia do poder. Quando o homem sobe os degraus e entra no salão de mármore, esquece imediatamente o que foi fazer lá, tão ocupado está pensando em como permanecer naquele lugar! Esquece, por exemplo, que os fins não justificam os meios, verdade aprendida com suor e lágrimas. Verdade secular. Meu tio bêbado Jackson tinha um refrão para qualquer hora imprevista, que bem serve aqui: “Gente, a vida não é nada disso”.

Antigamente ser honesto era uma obrigação, hoje é mérito. O crime só é criticável quando não dá certo. Quando dá certo, é inteligência. Uma banalização do mal, como disse Arendt para Heidegger: “Com a queda dos valores principais, caem também outros. A solidariedade, a misericórdia e até o amor”. Uma das pessoas mais agradáveis de todas que conheci foi sem dúvida o Betinho. Ele me disse: “O problema não é a fome, Domingos, o problema é a indiferença quanto à fome. Todo problema social é uma questão de ética. Temos de fazer uma revolução: moral”. Perguntei: “Sim, Betinho. Conte comigo. Mas, só falar em moral, já desmoraliza qualquer um! Quem seriam meus companheiros nessa árdua tarefa? Teríamos intelectuais utopistas, poetas e artistas. E eu entregando prêmios ‘que fazem a diferença’. Quem mais?”

Porém, pensando nisso me acalmo. Porque chegariam também outros como eu, a multidão dos homens lúcidos. Aqueles que não ficaram insensíveis aos prazeres da dignidade. E que, digo mais, estão doidos para se reunir! Pipoqueiros, vendedores de algodão doce. Podemos ser guardiões ferozes dos desvios da política local! Porém, jamais candidatos. Jamais meter a mão nessa massa decomposta. Jamais ser ou fazer esse tipo de política que está aí! Ou então não somos homens lúcidos! Não pode apertar a minha mão ou vir na minha casa, muito menos beijar minha filha. E assim pensando fico, de repente, horrorizado com o que penso. Olho no espelho que não estava ali e vejo o monstro moralista! 

Felizmente vem junto com ele aquele menino jornaleiro que existia antigamente: “As últimas! Não é elegante que um homem lúcido entre para a política! É apenas um bom emprego, com ganhos extras! A prioridade política é desmoralizar a política tão cedo quanto possível!” Enquanto alardeia suas extremadas manchetes, o menino vai mudando de cara, aumentando de idade até ter a minha cara e a minha idade. Sou eu que grito. Apavorado com minha própria radicalidade que ao mesmo tempo reconheço tola, porque afinal este é um artigo político. Se não tomo parte em nenhuma política, como vou pagar as contas no final do mês? O homem lúcido observa o panorama que os bandidos armaram e então estuda se não foi deixada ali uma fresta onde ele pode pegar seu rico dinheirinho e ir para casa exercer junto aos seus sua produtiva honestidade. A lucidez é ridícula. Assim como fugir por vezes é uma honra.

Brecht termina “A alma boa”: “Não tem solução. Mas tem de haver”. Segundo o dicionário, leniência significa “excesso de tolerância”. Esses tempos das leniências serão lembrados por todos com a reflexão do arrependimento.