sexta-feira, 14 de novembro de 2025

'O som dos martelos e os novos muros', por Ana Paula Henkel

Trinta e seis anos depois, a queda do Muro de Berlim ainda fala sobre o nosso tempo — e sobre a eterna batalha entre liberdade e controle


Após a queda do Muro de Berlim entre a Alemanha Oriental e Ocidental, em 1989 | Foto: Dacology Photo/Shutterstock


N a noite fria de 9 de novembro de 1989, o mundo ouviu um som que marcaria o fim de uma era. Não eram tiros, nem sirenes. Eram martelos e marretas golpeando o concreto, mãos trêmulas arrancando pedaços de pedra, vozes cantando nas ruas de Berlim. 

Jovens subiam sobre o muro, famílias se abraçavam, soldados confusos abaixavam as armas. Em poucas horas, o símbolo mais visível da tirania do século 20 começava a ruir diante das câmeras do mundo. Durante 28 anos, aquele paredão de concreto, e muitas vezes de fuzilamento, havia dividido não apenas uma cidade, mas todo um modo de vida. 

De um lado, a liberdade, cores, desenhos, incertezas, responsabilidades — mas liberdade. Do outro, a ditadura comunista com a sua utópica promessa de igualdade e sua prática de vigilância. Naquela noite, o Ocidente acreditou testemunhar o fim do medo. O som dos martelos era o som da alma humana, lembrando que nenhum regime, por mais brutal, é capaz de conter o desejo de ser livre.

O Muro de Berlim nasceu do fracasso moral do comunismo. Entre 1949 e 1961, cerca de três milhões de alemães orientais haviam fugido para o Ocidente. Era uma fuga silenciosa, mas constante, um êxodo que desmoralizava a propaganda socialista e ameaçava a própria sobrevivência do regime da Alemanha Oriental. 

Diante disso, o governo, com apoio da União Soviética, decidiu erguer uma barreira que impedisse seu povo de partir. O discurso oficial dizia que era uma “proteção contra o fascismo”. Na prática, era uma prisão em escala nacional. O muro se estendeu por mais de 150 quilômetros, cercado por fossos, minas, arames e torres de vigilância. Patrulhas armadas tinham ordem de atirar em quem tentasse fugir. O muro simbolizava o medo de perder o controle sobre a mente das pessoas. E o medo, no comunismo, era um poderoso instrumento de governo. A Stasi, a polícia secreta, transformou a Alemanha Oriental em um laboratório da vigilância total: vizinhos espionavam vizinhos, filhos denunciavam pais, a privacidade se tornou uma lembrança. A mentira era lei. A obediência, virtude.

Mas nada é eterno quando uma sociedade começa a se lembrar da verdade. A partir dos anos 1980, a União Soviética dava sinais de esgotamento. As reformas de Mikhail Gorbachev — glasnost e perestroika — tentavam modernizar um sistema que já apodrecia por dentro. A Polônia e a Hungria abriam suas fronteiras, movimentos cristãos ganhavam força e manifestações se multiplicavam pelo Leste Europeu. A Alemanha Oriental, comandada por um regime envelhecido e desacreditado, tornou-se um barril de pólvora. No outono europeu de 1989, as ruas de Leipzig e Dresden se encheram de protestos pacíficos. “Nós somos o povo”, gritavam os manifestantes — e o regime, impotente, já não tinha coragem de atirar.

Foi então que, na noite de 9 de novembro, a história tropeçou em um acaso. Durante uma coletiva de imprensa, um porta-voz do governo anunciou de forma confusa que as restrições de viagem haviam sido suspensas “imediatamente”. 

A população não esperou confirmação. Milhares correram aos postos de controle. Os guardas, sem ordens claras e tomados pela pressão da multidão, abriram os portões. Em poucas horas, o impossível aconteceu. As pessoas atravessavam livremente, outras subiam no muro e batiam com marretas, arrancando pedaços do concreto como quem retoma um pedaço da própria alma. 

Então, soldados se juntaram aos civis, lágrimas se misturaram a gargalhadas. Aquele colosso de concreto, que por quase três décadas havia simbolizado a força de um regime, desmoronava sem que um único tiro fosse disparado. O muro não caiu por decreto, caiu porque as pessoas perderam o medo. 

Foi a vitória da coragem sobre a obediência, da dignidade sobre o terror. Nos dias seguintes, o mundo acreditou viver o amanhecer de uma nova era. A liberdade parecia triunfar de forma definitiva. O comunismo desmoronava, a União Soviética ruía, e a democracia liberal expandia-se pela Europa. O Ocidente se sentia vitorioso. O muro havia caído, e com ele, imaginava-se, caíra também a última barreira entre o homem e a liberdade.

Por um tempo, o entusiasmo parecia justificado: fronteiras se abriram, economias floresceram, países do Leste ingressaram na União Europeia, e o mundo parecia marchar rumo à integração. Mas a liberdade, quando tratada como um fato consumado, começa a se dissolver. E as décadas seguintes mostraram que o muro físico havia desaparecido, mas os muros invisíveis começavam a se erguer dentro da cultura e da mente humana. 

O século 21 não foi o século sem fronteiras prometido por 1989. Foi o século da reconstrução de muros — ideológicos, digitais e morais. A polarização política e a demonização de um lado do espectro ideológico recriaram a lógica da Guerra Fria em escala doméstica. 

As sociedades ocidentais, antes unidas pela defesa da liberdade, passaram a se dividir entre visões de mundo que já não dialogam. O mesmo impulso que ergueu o muro de concreto reapareceu agora sob formas mais sutis: o medo do debate, o cancelamento, a censura disfarçada de “moderação de conteúdo”. 

A esquerda mundial, derrotada no campo econômico, ocupou o campo cultural e redefiniu as regras do discurso. Hoje, quem pensa diferente não é mais preso, é silenciado, rotulado, excluído. O muro da ideologia substituiu o muro do concreto. A patrulha de opinião, muitas vezes na imprensa, dentro de instituições, do governo e do próprio judiciário, substituiu a patrulha armada.

A tecnologia, que prometia liberdade, tornou-se o novo instrumento de controle. As grandes plataformas digitais se armaram com o poder de decidir o que pode ou não ser dito. Os algoritmos criam fronteiras invisíveis que isolam pessoas em bolhas de crença, alimentando radicalismos e suprimindo nuances. É um tipo de censura mais sofisticada: sem muros, sem tiros, mas com a mesma eficácia em limitar a liberdade. 

A China construiu seu próprio “Muro de Berlim” que aprisiona mais de um bilhão de cidadãos. Mas mesmo nas democracias, o poder concentrado das big techs, da imprensa, outrora livre e independente, e o avanço da cultura de cancelamento revelam um novo tipo de autoritarismo: sorridente, tecnocrático e moralmente justificado. Ao mesmo tempo, os muros geopolíticos voltaram a se erguer: a Rússia invade a Ucrânia, a China ameaça Taiwan, o Irã financia o terror, e a Europa, que acreditava viver em segurança, volta a sentir o peso da guerra em seu continente. O sonho de 1989, de um mundo unido pela liberdade, se dissolveu em desconfiança e controle e na mais absoluta falta de líderes corajosos capazes de enfrentar o novo leviatã. 


Os muros podem mudar de forma, mas o impulso de erguê-los é eterno. E só uma força é capaz de derrubá-los: a coragem moral de quem se recusa a viver de joelhos.


 Mas talvez o mais grave de todos os muros seja o muro interior. O Ocidente, cansado da sua própria liberdade, passou a relativizar seus valores. O que antes era virtude virou culpa; o que antes era convicção virou indiferença. O conforto substituiu a coragem, o consumo substituiu a fé e o relativismo substituiu a verdade. A liberdade, sem raízes morais, transforma-se em vazio. E o vazio, cedo ou tarde, pede por um tirano. Essa é a tentação eterna da humanidade: trocar o fardo da responsabilidade pela ilusão da segurança. Foi assim em 1961, quando um governo prometeu “proteger” o povo e ergueu um muro. E é assim agora, quando se promete “proteger a democracia” limitando a própria liberdade de expressão.

A queda do Muro de Berlim provou que nenhum regime é capaz de aprisionar o espírito humano para sempre, mas também mostrou que a liberdade não sobrevive ao esquecimento. As pessoas que enfrentaram a Stasi e desafiaram as metralhadoras não buscavam conforto, mas dignidade. Arriscaram tudo por uma ideia simples e poderosa: viver sem mentiras, com liberdade e sem controle social. Hoje, quando tantos preferem o silêncio à verdade, a coragem daquelas pessoas parece coisa de outro tempo. Mas não é — ela continua sendo a única coisa que separa o cidadão livre do súdito. 

Trinta e seis anos depois, ainda podemos ouvir o som dos martelos batendo no concreto. Mas talvez a pergunta mais urgente seja: quantos de nós ainda teriam coragem de empunhá-los? Os novos muros não estão mais em Berlim. Estão nos tribunais que distorcem constituições, nas universidades que punem o pensamento livre, nas redes sociais que moldam o discurso e nas consciências que preferem o conforto à verdade. O aniversário da queda do muro deveria servir de advertência, não de nostalgia. Não basta lembrar — é preciso compreender. A batalha entre liberdade e servidão nunca termina. Os muros podem mudar de forma, mas o impulso de erguêlos é eterno. E só uma força é capaz de derrubá-los: a coragem moral de quem se recusa a viver de joelhos. 

O muro caiu. Mas a vigilância continua sendo necessária. Porque o verdadeiro inimigo da liberdade nunca foi o concreto, mas o esquecimento de como ele é erguido.

Ana Paula Henkel - Revista Oeste