Enquanto vários países da América do Sul unem esforços contra o crime organizado, o governo brasileiro mantém postura ambígua em relação às facções
O narcotráfico é um problema histórico na América do Sul. A criminalidade moldou a geopolítica regional por décadas, com países como Colômbia, Peru e Bolívia no centro das atenções internacionais — fosse pela produção, pelas rotas de exportação ou pela influência de cartéis locais. Nos últimos anos, porém, o foco mudou. O Brasil, antes visto apenas como corredor logístico, passou a ocupar papel de destaque nas rotas do crime.
A megaoperação contra o Comando Vermelho (CV) no Rio de Janeiro, na semana passada, intensificou o debate sobre segurança pública e combate ao tráfico. A ação conjunta entre as polícias e o Ministério Público do Estado resultou na prisão de mais de 100 criminosos, na apreensão de cerca de 120 armas e de mais de 1 tonelada de drogas. A ofensiva teve recepção positiva. Pesquisa da AtlasIntel mostra que mais de 55% dos brasileiros apoiam ações desse tipo, número que supera 80% entre os moradores de favelas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a classificar a operação como “matança” durante uma entrevista na terça-feira, 4. Além disso, o governo atual resiste em classificar o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho como organizações terroristas, mesmo sob pressão internacional. O motivo foi revelado pela ministra Gleisi Hoffmann na quarta-feira, 5: a gestão petista é “terminantemente contra” tal categorização por acreditar que outros países podem “intervir” no Brasil com base nela.
Gleisi Hoffmann diz que o governo Lula vai lutar para que não classifiquem as facções criminosas como terroristas “O terrorismo, pela legislação internacional, dá guarida para que outros países possam fazer intervenção em nosso país. Nós não concordamos com isso.”
A aparente inércia do governo brasileiro deixa ações de outros países da América do Sul em evidência. No mesmo dia da operação no Rio, a Argentina de Javier Milei classificou as duas facções brasileiras como grupos terroristas. O Paraguai seguiu o mesmo caminho um dia depois, com decretos assinados pelo presidente Santiago Peña. O chefe do Conselho de Defesa Nacional, contralmirante Cíbar Benítez, explicou que a decisão se deveu a “atentados à soberania nacional, prejuízos à população e invasão de instituições”.
Esses movimentos marcam a nova agenda antidrogas na região, em que governos tratam o narcotráfico como ameaça à segurança nacional. Ao todo, cinco países da América Latina (Uruguai, Paraguai, Argentina, Bolívia e Peru) apertam o cerco contra o crime organizado, enquanto o Brasil se isola e se aproxima da postura de países como Colômbia e Venezuela — cujos mandatários são investigados e sancionados por supostas ligações com o tráfico.
Os países contra o narcotráfico
O presidente da Argentina, Javier Milei - Foto: Reprodução/Gage Skidmore/Flickr
Desde 2023, a Argentina intensificou o combate ao narcotráfico. Depois da escalada de violência na região portuária de Rosário, o governo lançou o Plano Bandera e criou o Grupo Especial Antinarcotráfico, que reúne agentes das principais forças de segurança. Em menos de um ano, as operações resultaram em quase 700 prisões e na apreensão de mais de 260 quilos de drogas — parte de um recorde nacional de cerca de 74 toneladas entre janeiro e setembro de 2024.
No campo legal, o presidente Javier Milei apresentou ao Congresso a Lei Antimáfia, que endurece o combate ao crime organizado e amplia o poder das forças de segurança. O pacote inclui a Lei de Reincidência, que prevê prisão imediata para reincidentes em crimes graves, incluindo o tráfico. O texto foi aprovado pelo Senado e entrou em vigor em março. Em fevereiro de 2025, a Argentina firmou acordo com o Paraguai para operações conjuntas ao longo de 1,6 mil quilômetros de fronteira. O país também coopera com os Estados Unidos: o FBI doou o sistema genético Codis — que gerencia bancos de dados de DNA —, e a Administração de Repressão às Drogas (DEA) passou a prestar apoio em treinamento e inteligência.
O Paraguai — país em rota estratégica e grande produtor de maconha — também endureceu a repressão. Entre 2023 e 2025, a Secretaria Nacional Antidrogas, em parceria com a Polícia Federal brasileira, erradicou 1,6 mil hectares de plantações nas regiões de Amambay e Canindeyú, o equivalente a 5 milhões de quilos fora do mercado. Em dezembro de 2024, foram apreendidos 430 quilos de cocaína no Chaco e destruído um depósito com 57 toneladas de maconha, um recorde histórico.
Ações conjuntas reforçaram o enfrentamento ao PCC e ao Clã Insfrán, com apreensões de armas e bens do crime. Em 2024, o país confiscou mais de 200 toneladas de maconha, resultando em um prejuízo de cerca de US$ 100 milhões ao tráfico. O Paraguai mantém o estado de Emergência Nacional sobre drogas até 2026 – que prevê a criação de uma força-tarefa para ações de prevenção ao consumo e reabilitação social de dependentes químicos –, com planos de prorrogação até 2030, e cooperação direta com os EUA em inteligência e operações.
No Uruguai, o combate ao tráfico ganhou força sob a gestão do expresidente Luis Lacalle Pou. O país passou a atacar toda a cadeia das quadrilhas, recriou brigadas antidrogas e reforçou a inteligência financeira. O governo desmantelou mais de 40 grupos criminosos e milhares de pontos de venda, retirando quase 5 toneladas de pasta base do mercado. Em 2025, uma ação em Punta Espinillo rendeu a maior apreensão da história — 2,2 toneladas de cocaína. No quinquênio, o país bloqueou aproximadamente US$ 3 milhões em bens e confiscou 13 toneladas de drogas. Cerca de um quarto da população carcerária cumpre pena por tráfico. A luta contra o narcotráfico, porém, não é uma pauta exclusiva da direita: o novo presidente Yamandú Orsi, de esquerda, manteve a linha dura de Lacalle Pou. Em uma palestra em agosto, ele foi enfático:
“A luta contra o narcotráfico não é uma tarefa partidária, mas política. Não é dever de um único governo, mas de todo o Estado — e não se trata de uma ação circunstancial, e sim institucional. O inimigo que ameaça nossas sociedades e instituições hoje é poderoso demais para ser enfrentado dividido. Devemos superar as iferenças temporárias e aceitar que ou sairemos desse desafio juntos ou afundaremos todos juntos”.
O Peru não fica para trás: tem intensificado o combate ao narcotráfico com apoio dos EUA, que em 2024 repassaram US$ 65 milhões, enviaram nove helicópteros e reativaram a interdição aérea de avionetas do tráfico. Naquele ano, o país erradicou 26 mil hectares de coca, desmantelou 120 grupos criminosos e apreendeu quase 80 toneladas de drogas. O governo também ajudou cerca de 10 mil famílias a migrar para cultivos de café e cacau, enquanto o Congresso classificou o Cartel de Los Soles, supostamente ligado ao ditador da Venezuela Nicolás Maduro, como organização terrorista. Ainda assim, as rotas amazônicas e as alianças com facções brasileiras continuam sendo um desafio para as autoridades.
Com a chegada de Rodrigo Paz à presidência, a Bolívia também dá sinais de alinhamento à nova frente regional contra o narcotráfico. Paz pretende retomar a cooperação com a DEA — afastada do país desde 2008 por decisão de Evo Morales — e pediu apoio ao presidente salvadorenho Nayib Bukele para ampliar o sistema carcerário. Desde a vitória eleitoral, em outubro — a posse será no próximo domingo, 8 de novembro —, Paz tem se aproximado de governos de direita nas Américas e prometido reforçar o controle das fronteiras. Depois da operação no Rio, cobrou medidas do ainda presidente Luis Arce para impedir a entrada de membros de facções brasileiras no país.
Do lado errado do muro
Enquanto os países vizinhos apertam o cerco ao narcotráfico, aliados de Lula enfrentam sanções dos Estados Unidos por conivência com o crime organizado. Em julho, Washington classificou o Cartel de Los Soles como organização terrorista, elevou a recompensa pela captura de Maduro para US$ 50 milhões e impôs novas sanções financeiras. Os EUA também reforçaram a presença militar no Caribe, em ações que resultaram na destruição de embarcações suspeitas.
Na Colômbia, o presidente Gustavo Petro foi acusado de permitir o avanço do tráfico e teve bens bloqueados, visto diplomático revogado e familiares sancionados por Washington. O governo americano o responsabiliza por enfraquecer o combate às drogas ao suspender a erradicação de plantações de coca e negociar com traficantes. Segundo a ONU, a produção de cocaína no país atingiu um recorde histórico em 2023, com alta de mais de 50% e volume estimado superior a 2,5 mil toneladas. Um relatório da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) apontou ainda que narcotraficantes colombianos têm negociado com o PCC e o Comando Vermelho para transportar e comercializar drogas pela Amazônia.
Mesmo diante desse cenário, Petro tem minimizado o problema. Em setembro, durante encontro com Lula em Manaus, defendeu a descriminalização da cocaína, alegando que a medida eliminaria o crime organizado. Pouco depois, voltou a causar polêmica ao afirmar que “narcotraficantes são trabalhadores”. O posicionamento de Lula não se distancia do discurso de seus aliados regionais e chegou até a repudiar as ações dos Estados Unidos contra eles.
Desde o início do mandato, o protagonismo no combate ao crime organizado tem ficado a cargo dos governos estaduais — como a megaoperação no Rio de Janeiro e as ações coordenadas contra o PCC na Baixada Santista (SP), conduzidas por Tarcísio de Freitas. Raramente o Executivo federal assume uma grande parcela das medidas; a exceção foi a operação Carbono Oculto, que contou com apoio da Polícia Federal.
O protagonismo no combate ao crime organizado tem ficado a cargo dos governos estaduais.
A Presidência só reagiu politicamente depois da crise no Rio. O Projeto de Lei Antifacção, redigido com urgência, foi apresentado depois da repercussão internacional e aguarda votação no Congresso. O texto prevê penas de 8 a 15 anos para líderes de facções, mas abre brecha para redução de até dois terços da pena “se o agente for primário e não se dedicar à liderança ou ao financiamento” da organização.
A diferença em relação aos outros países é expressiva. A Lei Antimáfia de Javier Milei, por exemplo, prevê penas de 8 a 20 anos para qualquer pessoa que participe, coopere ou auxilie uma organização criminosa — independentemente do cargo ocupado. Se houver uso de violência, intimidação social ou domínio territorial, a pena dobra, e os bens podem ser confiscados de imediato, mesmo antes da condenação.
Poucos dias antes da operação no Rio de Janeiro, Lula declarou que “os usuários são responsáveis pelos traficantes, que são vítimas dos usuários também” — uma fala que causou desconforto até dentro do próprio partido. Depois da repercussão, tentou se corrigir, alegando “erro de expressão”. Mas, dias depois da ação policial, em entrevista a agências internacionais, voltou ao tema: classificou a ofensiva como “desastrosa” e defendeu assistência às famílias dos criminosos mortos.
Antes mesmo da declaração de Lula, o governador Cláudio Castro (PLRJ) havia se defendido e revelado o que muitos já suspeitavam: o Planalto se recusou a apoiar as operações contra o narcotráfico. No início do ano, o governo fluminense solicitou ao Ministério da Defesa o uso de blindados anfíbios da Marinha, mas o pedido foi negado três vezes sob a justificativa de que o presidente não autorizava uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem). O ministro Ricardo Lewandowski negou a informação, mas foi desmentido por documentos divulgados pelo próprio Castro. Além disso, a Polícia Federal, que havia participado da operação Carbono Oculto, também se manteve distante, alegando que seu envolvimento “não seria razoável”. Ironicamente, pouco depois, o presidente decretou uma GLO para a COP30, em Belém do Pará — um evento diplomático, não uma crise de segurança pública.
A diferença de posturas evidencia um contraste grave. Enquanto países vizinhos já encaram o narcotráfico como ameaça direta à soberania e à segurança nacional, o governo Lula e seus aliados seguem presos a uma retórica ideológica. Em vez de tratar o enfrentamento às facções como política de Estado, preferem politizar o tema — alternando entre relativizar a violência do crime organizado e deslegitimar a atuação das forças de segurança.
O resultado é um vácuo de liderança diante de um problema que extrapola fronteiras e deveria unir diferentes espectros políticos. A longo prazo, essa postura tende a isolar o Brasil e a enfraquecer o esforço coletivo que, enfim, boa parte da América do Sul decidiu assumir: enfrentar um inimigo comum.
???????
Rachel Díaz - Revista Oeste